Almanaqueiras: ou não queiras.

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quinta-feira, 8 de junho de 2017

a gente sempre se atrasava porque achava aventuras no caminho.

Os mitos e os heróis

Contardo Calligaris 




Nos meus tempos, durante o ensino médio obrigatório, aos 12 ou 13 anos, a gente lia a "Ilíada" e a "Odisseia", na tradução italiana de Vincenzo Monti (um bom poeta do século 18).

Eu gostava de histórias de guerra (na literatura e no cinema) e, em tese, seria bom público para o sítio de Troia e o clamor de suas batalhas. Mas preferia a "Odisseia" à "Ilíada"; as dificuldades e as tentações de Ulisses nos dez anos que levou para voltar de Troia à sua Ítaca me evocavam, a cada dia, a volta para casa depois da escola: a gente sempre se atrasava porque achava aventuras no caminho.

Bem antes de ler "Ulisses", de James Joyce, eu e meus colegas pensávamos reescrever a "Odisseia" como história das peripécias de um grupo de estudantes do ensino médio voltando para casa depois da aula. Polifemo era um cara grandão que tocava o acordeão, pedia esmola e nos dava medo. Circe era uma prostituta corpulenta e felliniana, que estava sempre na esquina de Piazza Aspromonte, inevitável.

Mas será que eu e meus colegas acreditávamos em Circe, a maga perigosíssima que transformava os homens em animais ou no ciclope Polifemo, que devorava os companheiros de Ulisses, dois de cada vez?

Acreditávamos o suficiente para encontrá-los regularmente no caminho de casa. Mas talvez soubéssemos que eles eram metáforas de todo tipo de "perdição" que nos amedrontava e fascinava ao mesmo tempo e que, de fato, esperávamos encontrar no futuro, nas esquinas da vida.

E os deuses do Olimpo, a gente acreditava neles? Claro que não, e claro que sim.

Claro que sim, porque eles apareciam na narrativa da nossa trabalhosa volta para casa. Aliás, em caso de grande atraso, culpar Poseidon, que obstaculizava o retorno de Ulisses, era um jeito certo de arrancar um sorriso aos nossos pais e evitar uma bronca.

Claro que não, porque éramos cristãos e achávamos, no fundo, que havia algo infantil na proliferação dos deuses do Olimpo, todos animados por sentimentos demasiado parecidos com os nossos (ira, ciúme, vingança etc.). Não deixa de ser bizarro: a gente julgava improváveis os deuses do Olimpo e declarava acreditar num Deus tão improvável quanto (uno e trino, com filho encarnado e sacrificado"¦).

Mais tarde, no ensino médio, começamos a estudar filosofia –claro, pelos gregos. Enquanto Platão me dava sono, eu tinha uma tremenda preferência por Aristóteles. Naquela época, li a "Ética a Nicômaco", a "Poética" e a "Metafísica". Anos depois, André de Muralt me disse um dia que Aristóteles só era possível na Grécia, onde a luz do meio-dia bate sem deixar sombras, e que nós, europeus mais nórdicos, sempre nos perderíamos nas falsas complicações dos crepúsculos, nunca enxergaríamos o mundo com a mesma clareza.

Tendo a concordar com ele, mas me sobra uma pergunta, que vem com um certo escárnio: será que Aristóteles, com quem o Ocidente começou a pensar e a enxergar o mundo, acreditava mesmo nos mitos e nos deuses gregos? Como é possível que alguém que pensa parecido conosco acredite em divindades tão "infantis" quanto os deuses do Olimpo?

Em 1983, Paul Veyne, o grande historiador da antiguidade grego-romana, publicou "Os Gregos Acreditavam em seus Mitos?" (no Brasil, ed. Unesp). Li vorazmente e aprendi, sobretudo, que, gregos ou não, todos nós recorremos a várias maneiras de crer e de conceber a verdade.

Os dorze, da Etiópia, acreditam que o leopardo é um bicho cristão e devoto; mesmo assim, não deixam de proteger seu rebanho às sextas, embora, em tese, para cristãos como o leopardo, seja dia de jejuar carne.

E o que dizer de ateus e agnósticos que dizem sem hesitar "Graças a Deus" e "Se Deus quiser"? Acreditam ou não acreditam?

No domingo (4), assisti a "Mulher-Maravilha", de Patty Jenkins, que talvez seja o melhor de todos os filmes dedicados a personagens da Marvel Comics. Pela virtude do filme, que é ótimo, acreditei o suficiente para me envolver na história.

Talvez, daqui 2.000 anos, alguém se perguntará se os homens do século 21 acreditavam ou não nos super-heróis da Marvel, que são uma mitologia moderna.

Talvez, no futuro, alguém observe também que os mitos não são tanto objetos de crença ou descrença; eles são, sobretudo e sempre, a expressão de uma necessidade. E, aparentemente, desde a Grécia antiga até hoje, a gente está sempre precisando de heróis. 

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