Almanaqueiras: ou não queiras.

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terça-feira, 13 de junho de 2017

Viva Ariano Suassuna

90 anos de Ariano Suassuna são celebrados com livros e peça teatral

Escritor e dramaturgo ganha reedição de seu principal romance, é reverenciado em musical e terá obra inédita lançada





Os atores da Cia. Barca dos Corações Partidos encenam a peça “Ariano — O auto do Reino do Sol”, com direção de Luiz Carlos Vasconcelos e texto de Braulio Tavares
Foto: Marcelo Theobald


por Luiz Felipe Reis



RIO — Criador de porção significativa do imaginário que revela a alma e a vida do sertanejo, Ariano Suassuna foi um autor cuja sensibilidade magnetizava mundos opostos: o erudito e o popular, o cômico e o trágico, vida e morte, entre outros polos cuja distância ele se empenhava em anular — apesar de deixar bem claras, também, suas rejeições, sobretudo no que orbitava fora do seu universo ibérico-sertanejo.

Perto do fim da vida, essa vontade unificadora mirou o conjunto da sua obra. Suas criações, construídas a partir do livre trânsito entre poesia, teatro, romance e artes visuais, passaram a ser compreendidas por ele como partes de uma única “obra total”, a que batizou de “A ilumiara”. Seus últimos escritos literários, anotações e esforços de revisão de títulos já publicados buscaram, segundo o pesquisador Carlos Newton Júnior, “ressaltar a unidade subjacente a todo o seu trabalho”.

Agora, três anos após sua morte e poucos dias antes do aniversário de 90 anos de seu nascimento (em 16 de junho), o autor paraibano será presenteado com tributos editoriais e teatrais que reafirmam suas intenções finais. A editora Nova Fronteira acaba de publicar a edição definitiva — revisada pelo autor — do “Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta”, e planeja para novembro a publicação de um box contendo o “Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores”, última obra do autor, concluída poucos dias antes de sua morte e considerada seu testamento literário, por integrar elementos do seu teatro, poesia, prosa de ficção e ensaio — “Dom Pantero” é a grande sequência do “Romance d’A Pedra...” e narra a trajetória de um misto de escritor, ator, encenador, professor e palhaço que dedica a sua vida à realização de uma grande obra, intitulada “A ilumiara” .

Ao mesmo tempo que os livros, chega aos palcos um espetáculo calcado nos elementos que fundamentam o seu universo literário e dramatúrgico: “Suassuna — O Auto do Reino do Sol”, que estreia nesta quinta no Teatro Riachuelo. Idealizado e produzido pela Cia. Barca dos Corações Partidos e pela produtora Andrea Alves, o musical foi concebido a partir de um texto inédito, de Braulio Tavares, inspirado no universo artístico de Suassuna: a luta por sobrevivência do homem sertanejo e do artista popular, com seus causos, credos, conflitos e casos amorosos.

Com direção de Luiz Carlos Vasconcelos, a montagem terá canções originais coassinadas por Chico César, Alfredo Del Penho, Beto Lemos, com letras de Braulio. A encenação reinventa passagens e personagens dos mais importantes romances e peças de Ariano, como “Romance d’A Pedra...”, “Fernando e Isaura”, “As infâncias de Quaderna”, além do “Auto da Compadecida” e da peça “Uma mulher vestida de sol” (1947), que marca o início de sua carreira e completa 70 anos em 2017. É o teatro, portanto, que fez nascer Suassuna.

— Nossa peça surge após anos de aproximação, leitura e de contato com Suassuna — diz Andrea.

A encenação surgiu não só do desejo da produtora, mas de um pedido do autor. Em 2007, Andrea havia criado um tributo pelos seus 80 anos, e em 2009 produziu a peça “A farsa da boa preguiça”. Foi quando Suassuna, entre agradecido e preocupado com o futuro, lhe disse: “Não venha comemorar meus 85 anos, não vou morrer. Festeje os meus 90!”, conta Andrea.

— Me senti condecorada, e com uma grande missão — diz.

Entre uma conversa e outra Suassuna lhe deu a chave do espetáculo. O autor dizia ser um palhaço frustrado, e que o palhaço do “Auto da Compadecida” era um dos seus personagens prediletos. Ela conta ter criado então “uma grande homenagem ao palhaço de Ariano”, convidando Vasconcelos, (criador do palhaço Xuxu), para a direção, e Braulio para assinar uma história — guiada por uma trupe de circo-teatro — que reafirma tanto o gênio como as idiossincrasias do autor.

— Criei uma história que se assemelha ao universo de Ariano, aos temas e tipos de personagens criados por ele... Mas evitamos fazer um pastiche de Ariano, algo laudatório — diz Braulio. — Por exemplo: Ariano não gosta de rock? O.k. Mas nós gostamos. Então isso está em cena, mas não o fere, pois cada referência está em conversa com seu universo. Acho que homenagear alguém significa também levar alguma coisa para essa pessoa. Não é só dizer “olha o que eu peguei de você”, como te copiei. Não é isso. É dar algo em troca. E aqui estamos dando em troca versos, vozes, canções e a minha escrita. Mas Ariano está presente, com todo seu imaginário.

Com direção e dramaturgia definidas, era hora de os atores-músicos-cantores-compositores da Barca dos Corações Partidos entrarem na roda. Juntos de Chico e de Braulio eles compuseram mais de 20 canções, das quais 15 serão interpretadas em cena. Após terem iniciado a carreira emprestando voz a repertórios de grandes compositores, nas peças “Gonzagão, a lenda” (2012), com músicas de Luiz Gonzaga, e “Ópera do malandro” (2015), de Chico Buarque, a Barca se consagrou em 2016 com “Auê”, o seu primeiro musical autoral, que conquistou os mais importantes prêmios daquele ano e volta à cena no dia 5 de julho. Agora, a trupe assume um desafio ainda maior, o de criar uma obra inteiramente original a partir de um universo literário monumental, o de Suassuna. Após viagens de pesquisa ao sertão da Paraíba e a Recife, muitas leituras das obras do mestre e dois meses e meio de ensaios, o grupo construiu uma aventura ambiciosa, uma epopeia cravada por temas universais, como guerra, amor, arte, vida e morte.

— Hoje, depois de todo esse processo, quando olho os sonetos de Shakespeare ou os escritos de Cervantes e os comparo à obra de Ariano, não consigo dizer que um é maior ou menor — diz Vasconcelos. — O que os une é que em todos os três a gente reconhece que o que é dito vai valer para sempre. A verticalidade e a profundidade estão em tudo que Ariano escreveu. E é isso que dá a dimensão do gênio que ele era. Os temas universais são revelados aos montes em toda a sua obra, sempre de maneira clara e incisiva.


Para compor a trama, Braulio Tavares recorreu à forma medieval do auto — bastante apreciada por Ariano —, e retomou as pesquisas que havia feito para escrever a microssérie “A Pedra do Reino” (2007) e o livro “ABC de Ariano Suassuna”. O resultado é um “banquete suassúnico” guiado por uma trupe de artistas mambembes que rumam para Taperoá, cidade natal de Ariano, onde planejam encenar um espetáculo em sua homenagem. Se o objetivo e o destino estão definidos, os obstáculos no caminho são muitos e inesperados — e são as agruras desses artistas circenses e sertanejos que espelham, no olhar dos criadores da peça, a condição do artista no Brasil de hoje.

— O que esses artistas de circo enfrentam aponta o drama que todos nós vivemos, sobretudo nesse momento — diz o diretor. — Essa peça espelha o que é sobreviver em meio à guerra, porque é essa a realidade do artista brasileiro.

Essa dimensão trágica — ausência de controle sobre o destino — ganha densidade à medida em que a dramaturgia passa a encadear cenas de guerra e de perseguição, entre vinganças e violências perpetradas por dois clãs inimigos que disputam as terras de um lugar inventado por Braulio, uma mina abandonada chamada Soturno. Nesse lugar se encontram os Fortunato, criadores de gado, e os Moraes, liderados pelo comerciante de minérios Antonio Moraes — personagem de “Auto da Compadecida” e o grande vilão do “Romance d’A Pedra do Reino”.

— Tomei a liberdade de criar o clã Fortunato, para dar a dimensão dessas disputas de famílias e dessas guerras por terra que arrasam o país — diz Braulio.

Para o autor, Soturno é como Canudos, um lugar onde gente pobre, sem terra e sem teto tenta criar um arremedo de sociedade, mas é cercada e violentada pelos “donos do Brasil oficial”.

— Ariano dava especial atenção a esse assunto, a essa distinção entre o Brasil real e o oficial. O oficial que cerca e fuzila o real, o povo que luta para plantar, colher e viver. Então Soturno é um lugar habitado por gente pobre, mas essa terra tem dono. É disputada na Justiça ou na bala por essas famílias. Isso é o Brasil. Soturno é onde vivem aqueles a quem não são oferecidas condições de vida, no sertão ou no Complexo do Alemão. É qualquer lugar que alguém despossuído toma e, no dia seguinte, chega a polícia e bota abaixo.

Mas em “Suassuna — O Auto do Reino do Sol”, o trágico não é o todo, e assim como na “obra total” de Suassuna, há sempre dois mundos em conversa: de um lado o universo festivo, cômico e artístico da trupe circense, e do outro o núcleo trágico e sangrento dos clãs de Soturno. É quando esses polos se cruzam e inoculam na trama uma terceira via — a história de amor à “Romeu e Julieta” entre Lucas e Iracema, integrantes de famílias rivais — que o tragicômico universo de Suassuna se completa:

— As dicotomias estão aos gritos na obra de Ariano, e também na peça — diz o diretor. — Criamos um drama de riso e de dor. Quando é dor, é pungente, e quando vem o divertimento é para rir de verdade.

Serviço — “Suassuna — O auto do Reino do sol”

Onde: Teatro Riachuelo — Rua do Passeio 38, Centro (2533-8799).

Quando: Qui. a dom., às 20h30m.

Quanto: R$ 40 a R$ 150.

Classificação: 12 anos.

Serviço — “Romance d’a pedra do reino”

Autor: Ariano Suassuna.

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Editora: Nova Fronteira.

Páginas: 800.

Preço: R$ 89,90.




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