Almanaqueiras: ou não queiras.

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sexta-feira, 9 de junho de 2017

"judicialização da saúde"

O coração e as 'máfias' 


Fausto Feres 




Como cardiologista que sou, realizei um procedimento em um paciente de 79 anos para a correção de uma estenose da valva aórtica.

A estenose é uma obstrução da valva. A via de saída do sangue do coração do paciente estava praticamente bloqueada: a abertura era de apenas 0,6 cm², quando o normal é 4 cm².

Há sete anos, o único tratamento disponível para esse problema era abrir o tórax e trocar a valva obstruída por uma prótese. Naturalmente, uma cirurgia cardíaca traz riscos elevados, principalmente para um idoso.

Hoje, felizmente, com o progresso da ciência e da tecnologia, o tratamento indicado é o implante percutâneo transvalvar, realizado por meio de uma punção. Não há abertura do tórax, apenas o implante de uma prótese valvar sobre a valva doente por meio de um cateter, que é introduzido na artéria femoral e vai até o coração.

Os resultados da nova técnica são cada vez melhores. Estudos recentes comprovam sua superioridade em relação à cirurgia cardíaca e o procedimento é recomendado nos EUA.

Graças a esse tratamento, o meu paciente passa bem. Mas não pense o leitor que tudo tenha sido fácil e rápido. Na verdade, não foi nada simples. As dificuldades, entretanto, não foram de ordem médica, mas sim jurídica.

O plano de saúde do meu paciente se negava a autorizar o procedimento. A justificativa para essa desumanidade se ampara no fato de que tal método, como outros tantos, embora também benéficos, não constam da lista da ANS (Agência Nacional de Saúde).

E como isso foi sanado? Graças a uma decisão judicial, o plano de saúde foi obrigado a autorizar o tratamento. Não raro, é graças à Justiça que podemos salvar vidas.

Alguns criticam a chamada "judicialização da saúde", como se ela não passasse de uma jogada de "máfias". Aliás, esse termo, "máfias", foi usado pelo diretor da Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde), Pedro Ramos, em artigo publicado neste espaço em 28/2 deste ano.

Lendo o artigo dele, temos a sensação de que estamos todos submetidos a um conluio entre profissionais de saúde, advogados e fabricantes de materiais médicos hospitalares, que se mancomunam para incentivar o cidadão comum a buscar benefícios indevidos na Justiça.

Indevidos? Afirmações como essa apenas corroem a reputação de profissionais de saúde sérios, competentes, honestos, que atuam com dignidade. Seguramente, a grande maioria. Não podemos e não devemos julgar uma classe por atos isolados.

O direito de ir à Justiça não pode ser amaldiçoado porque alguns erros já aconteceram.

Por certo, os médicos e outros profissionais que não cumprem a lei devem ser julgados e punidos. Do mesmo modo, os planos de saúde que não atendam aos seus usuários de maneira justa e correta -e são muitos- devem ser corrigidos.

Quanto a esses planos, as mazelas são inúmeras. Muitas vezes, desamparam seus pacientes e os encaminham para hospitais públicos, sem reembolsá-los pelo serviço prestado. Portanto, quando criticarmos os desvios causados pela "judicialização da saúde", não nos esqueçamos de criticar também, no mesmo tom, a insensibilidade dos planos de saúde.

FAUSTO FERES, doutor em medicina pela USP, é médico do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, onde foi diretor clínico eleito e diretor do serviço de cardiologia invasiva (2004-11)

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