Almanaqueiras: ou não queiras.

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quinta-feira, 22 de junho de 2017

casais se encontram, se formam e, bem ou mal, fazem sexo juntos.

Os segredos do desejo

Contardo Calligaris 


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Há duas maneiras, aparentemente opostas, de entender o desejo sexual da gente.

Alguns (talvez os mais numerosos) dizem que desejam seu parceiro ou parceira, e isso é o que importa.

Outros declaram que o desejo sempre depende de fantasias. Se essas fantasias não forem realizadas ou evocadas na hora do sexo, não haverá parceiro ou parceira que baste para que o desejo dê o ar da graça.

Os primeiros, geralmente, acusam os segundos de serem "desviantes": em vez de curtir um semelhante, esses "tarados" gostam de situações, objetos etc. É aquela coisa: você diz que gosta de mim, mas você gosta é de me amarrar, ou de deixar a janela aberta e esperar que alguém esteja olhando ou outras esquisitices desse tipo. Você nem sequer transa com pessoas, você transa com seus filmezinhos de bolso.

Os segundos se defendem exortando os primeiros a pensar um pouco mais: talvez eles também brinquem com situações, objetos e filmezinhos de bolso, só que de maneira oculta. Os pensamentos bizarros e impuros dos segundos não teriam nada de "desviante": o desejo sexual seria sempre movimentado por fantasias.

Só que os primeiros desconheceriam esse fato: eles achariam que estão morrendo de tesão por seus parceiros, enquanto os ditos parceiros só lhes serviriam de auxiliares para realizar fantasias inconscientes.

Penso assim: sim, o desejo da gente se excita por causa de situações, objetos etc., mas o parceiro ou parceira da gente é mais do que um figurante no nosso filmezinho ou um cabide para os objetos que nos excitam.

Imagine alguém que só se excita vendo as lágrimas jorrarem dos olhos do seu parceiro (sim, existe). Será que ela se excitaria vendo qualquer um chorar? Claro que não.

Ou imagine alguém que só se excita humilhando sua parceira, mas essa fantasia só funciona se ele for apaixonado por essa parceira. No caso, o que sustenta o desejo? É a fantasia ou é a parceira amada?

Esses são alguns dos pensamentos com os quais saí do cinema, depois de assistir a "Kiki - Os Segredos do Desejo", de Paco León.

É uma pena que o filme passe em poucas salas. Ele conta cinco histórias de amor e sexo que podem surpreender um pouco quem não tenha uma certa familiaridade com o vasto campo das ditas parafilias (ou seja, formas "diferentes" de amar).

Se, dos nossos dois grupos, você pertence ao primeiro, o filme terá o efeito (benéfico) de aumentar sua tolerância; descobrir e entender desejos diferentes do da gente é o melhor jeito de começar a entender o desejo que nos anima. Além disso, as histórias conseguem ser leves e muito bem-humoradas sem se tornar cômicas (o que as afastaria de nós, tornando-as "pitorescas"). Ou seja, a gente ri bastante no filme, mas não tanto dos protagonistas e de seus estranhos desejos, quanto, sobretudo, de nós mesmos.

Se, dos nossos dois grupos, você pertence ao segundo, o filme terá o efeito (também benéfico) de retirar um pouco do caráter trágico da experiência de quem alimenta seu desejo em fantasias menos comuns.

Seja como for, que você esteja entre os primeiros ou entre os segundos, o filme não nos deixa subestimar ou, pior, desrespeitar as fantasias (dos outros e nossas). Isso, por si só, é uma forma de sabedoria, que tem consequências práticas imediatas na vida amorosa.

Um exemplo. Imaginemos que cada indivíduo (até se pertencer ao nosso primeiro grupo) tenha uma fantasia (consciente ou inconsciente), a qual rege seu desejo sexual. Essa fantasia pode ser reprimida, esquecida, confinada num armário, mas ela não vai mudar.

Conclusão: se você tem repugnância pela fantasia sexual de seu amado ou de sua amada, ou simplesmente se você não a curte, pois bem, desista dele ou dela.

Nunca se engaje numa relação imaginando que, "pela força do amor", você vai poder modificar a fantasia sexual de seu parceiro ou parceira. Tampouco se engaje numa relação com o projeto de tornar irrelevante a fantasia do outro ("ele vai se acostumar a gostar de mim como eu sou, sem todas essas frescuras etc.").

As fantasias sexuais de alguém não mudam quanto ao essencial. Também é impossível que cada um de nós encontre um parceiro ou uma parceira que tenha uma fantasia complementar à nossa. Apesar disso, como mostra "Kiki", cotidianamente, acontece um milagre: casais se encontram, se formam e, bem ou mal, fazem sexo juntos. 

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