Almanaqueiras: ou não queiras.

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segunda-feira, 7 de novembro de 2016

o mundo tá cheio de causas importantes E belas paisagens para encontrar Mas a única coisa que eu quero encontrar agora É outro amante

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 Canção pra Silvia
(uma releitura de Song for Sharon, de Joni Mitchell)

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Eu fui para Sonnenallee, Silvia
comprar crédito pro celular
E vi aqueles vestidos de noiva
Naquelas lojas cafonas que tem lá
O ônibus grande, sanfonado, com o fole cheio de gente
Em busca de alguma coisa que lhes encha a alma
Uma menina olha pra um dos vestidos
E torce para que chegue logo o dia em que ela possa usá-lo

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Punks de butique numa estação em Mitte
Se equilibram no metrô sem se segurar
Como seus pais antes deles
Eles vão andar nos tetos dos prédios de Kreuzberg
Me ilumina, Dona Dietrich
Porque assim que este bonde parar
Eu vou pro bar
Beber uma Weisses de um litro
Os rebanhos de desempregados vão brindar comigo

No jogo eu até consigo ficar calma
Mas perco a linha quando é o amor a pauta 
Porque eu não consigo manter o controle
O que sinto tá sempre escrito na minha cara
O pupilo de Jodorowski lê tarô num café em Paris
Eu fui vê-lo sem levar a coisa muito a sério
E ele leu as cartas e viu que a minha sorte no amor
Na verdade não era sorte, era desgraça

Silvia, eu larguei meu homem
Num cruzamento em Alt-Treptow
E vim pra essa São Paulo aqui
Enfrentar meu mau funcionamento
O amor é um perigo constante
Você pensaria que eu tô acostumada a isso
Olha, hoje eu até que aceito mudanças
Melhor do que eu antes aceitava

Uma mulher que eu conhecia se matou
Acho que ela só queria se livrar da futilidade
Ou punir alguém
Meus amigos me ligaram ontem o dia todo
Parece que vivemos tão perto do limite
Entre emoções e abstrações
Mas tão longe da satisfação

Vovó diz: “Tenha filhos”
Você e mamãe dizem “Encontre uma ONG
Ajude velhinhos ou dedique tempo ao aquecimento global”
Ok, o mundo tá cheio de causas importantes
E belas paisagens para encontrar
Mas a única coisa que eu quero encontrar agora
É outro amante

Quando eu era criança no Recife, Silvia,
Eu ia para os casamentos
Para ver os beijos e as lágrimas
E e o vestido e o véu e a grinalda
E voltando para casa de ônibus 
Ou brincando na Praça Chora Menino
Era com o amor que eu sonhava
Antes de mais nada

E quando eu ia dançar na Soparia
Na verdade era só um namorado que eu queria
Queria era sonhar
Usando o sutiã de mamãe embaixo da camiseta do Hole
O menino me mostrou que primeiro a gente ganha o beijo
E depois as lágrimas
Mesmo assim uma cerimônia com sinos tocando 
Ainda é o sonho desta romântica descontrolada

Agora tem 29 cantores no karaokê da Roosevelt
Cantando sozinhos ou em par 
Num anonimato vigoroso
Mas da mesa um rosto inexpressivo olha pro palquinho
Olha e olha olha e olha
E o poder da razão
E isso de sentir tudo e muito
Parecem me servir
Só pra me enganar

Silvia, você tem um marido
E uma família e um apartamento
Eu tenho a maçã da tentação
E uma cobra tatuada no meu braço
Você ainda tem a Catalunha
Eu tenho meus olhos pra ver a terra e o céu
Você canta para seus amigos e sua família
Eu sigo viajando.


O Suplemento Pernambuco me pediu para traduzir essa canção de Joni Mitchell em homenagem ao aniversário de 73 anos da cantora, que é hoje. O álbum Hejira, do qual essa música faz parte, foi lançando em novembro de 1976 e escrito quando a cantora tinha 33 anos, durante três road trips pelos EUA, que ela fez tentando superar o fim do namoro com o baterista John Guerin. 

Essa música foi feita para Sharon Bell, melhor amiga de Mitchell. O conflito central do poema é o fato de que Sharon, que queria ser cantora, casou e foi morar numa fazenda, enquanto Joni, que virou cantora famosa e respeitada, queria mesmo era casar. A letra se passa durante uma viagem de balsa que Joni fez até Staten Island, e ela vai falando do trajeto, de memórias da infância e do Canadá, que é terra natal das duas. O sentido de mudança e deslocamento que aparece em todo álbum fica presente em Song for Sharon também pelo vaivém temporal.

Quando prestei atenção mesmo na letra, fiquei doida, já que parecia que tinha sido feita para mim (sendo essa, afinal, a função mais nobre de um poema!). Tem essa mania de viajar para ver se a solidão diminui, a relação das duas amigas e a leve autossabotagem que aparecem no texto. O exercício que tentei fazer nessa “tradução”, portanto, foi reinterpretar o poema de Mitchell como se fosse eu escrevendo uma música para minha melhor amiga. Tentei manter o mais que pude as muitas rimas do original (porque é, afinal, um poema para ser vocalizado), mas fiz a libertinagem de adaptar todas as referências geográficas, temporais e culturais, sem mudar, no entanto, o “desejo” de cada estrofe.
Usando a ideia de criar um paralelo entre passagem do tempo e deslocamento físico do original, pus minha amiga Silvia Aguiló-Losa como destinatária, e nossos lugares como referencial imagético: nossa Berlim compartilhada, meu Recife particular e a Catalunha dela. Silvia, como a Sharon da música, é uma engenheira que escreve e não mostra pra ninguém, mas é casada e feliz da vida, enquanto eu, bem, eu só escrevo.

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