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sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Abrindo à faca

Em volta do sr. Bolsonaro estão os mesmos setores que deram o golpe em 1964

Vladimir Safatle



Contrariamente ao que gostariam alguns, a facada recebida pelo senhor Bolsonaro não selou o destino destas eleições.

Ninguém viu ascensão irresistível em direção a uma vitória no primeiro turno. No entanto, o ataque explicitou os principais movimentos que animam o pleito.

Pois ele teve o dom de deixar evidente a rede de articulações e apoios que envolvem essa candidatura política que até agora parecia inesperada, improvisada e até mesmo espontânea.

Tudo nos levava a crer que os candidatos “dos mercados” eram outros, mais palatáveis e próximos de uma certa imagem gerencial, ilusória porém sempre alimentada. Mas a política brasileira se decide em outros espaços e, ao que parece, as decisões já foram tomadas.

Desde 2014, é claro que aquilo que chamamos de Nova República terminou. Seu sistema de pactos e acordos permitiu ao país produzir para si a ilusão da governabilidade.

Por ser uma conciliação na qual governavam setores que combateram a ditadura juntamente com remanescentes da mesma —isso sob o horizonte da Constituição de 1988—, 
a Nova República representava um sistema de freios em duas direções. Ela não era capaz de caminhar em direção a transformações radicais profundas, mas também impedia ajustes neoliberais draconianos.

O resultado foi um país que, do ponto de vista das reformas neoliberais, é uma aberração. De seus quatro principais bancos, dois são estatais. De suas quatro principais empresas, duas são estatais.

Seu sistema de saúde público é universal e gratuito, suas universidades públicas são todas gratuitas. Nos dias atuais, essa é uma configuração totalmente incomum para países de grande economia (à parte a China).

O desgoverno Temer foi a última tentativa de impor um choque neoliberal nos limites de uma “democracia” formal.

Como se viu, o resultado foi catastrófico. Não apenas temos o governo mais impopular da história recente brasileira, mas um país sacudido por greves que param toda a economia, um povo em pé de guerra, um Congresso paralisado e, segundo pesquisas da FGV, com mais “dois Uruguais” de novos pobres que apareceram entre 2014 e 2017.

Qualquer pessoa minimamente sensata percebe o caráter explosivo da situação.

No entanto, em vez de tentar alguma outra forma de pacto social extorquido, setores da sociedade brasileira acreditam poder superar a Nova República e seus impasses reeditando as alianças da ditadura militar.

Quem se organiza em volta do sr. Bolsonaro são os mesmos setores que, associados, deram o golpe de 1964: o empresariado nacional, o agronegócio, a ala conservadora das igrejas e da imprensa, assim como as Forças Armadas. Pela primeira vez desde 1984, eles acreditam poder voltar
a governar o país, agora sem intermediários.

Pois o cálculo é claro. Em um país como o Brasil, essa pauta de ajustes neoliberais só pode ser realmente implementada à bala, sob os auspícios de um governo autoritário, que cavalga na mobilização contínua da brutalização social, do desprezo fascista pelos setores mais vulneráveis —historicamente vítimas de preconceitos (índios, negros, mulheres, LGBT, refugiados) e do anti-intelectualismo ressentido que sempre animou parte da classe média brasileira.

A última declaração do senhor Villas Bôas, supostamente comandante em chefe das Forças Armadas, apenas explicita como os militares já se posicionaram no interior dessa nova configuração. Eles já se veem como a força que tutelará o novo regime.

Declarações como essas mostram claramente que os militares não estão realmente dispostos a retornar à caserna, sem ter receio algum de chantagear e ameaçar a sociedade em suas escolhas eleitorais.

O único problema é que, por mais que se tente forçar a comoção popular com alguém da natureza do sr. Bolsonaro, a operação já se deparou rapidamente com seus limites.

Falta-lhe um assessor de marketing melhor, alguém que esconda melhor sua inadaptação evidente para um discurso do tipo “nunca fiz mal a ninguém” enquanto se deixa fotografar no leito de hospital fazendo o gesto de uma arma apontada. Ou seja, mais fatos externos precisam aparecer.

Vladimir Safatle
Professor de filosofia da USP, autor de “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo”.

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