Almanaqueiras: ou não queiras.

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quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Melhor ser corrupto na Bulgária, por exemplo.

No Brasil ou na Bulgária, pobreza favorece os esquemas da corrupção 

Marcelo Coelho



Claro que a corrupção não existe só no Brasil. Por muito tempo, foi dito que a diferença –para pior– estava na impunidade reinante por aqui. A opinião persiste, pela inércia que é a força de todo clichê. Mas chego a duvidar se, em algum outro país do mundo, há tantos figurões presos como no Brasil.

Melhor ser corrupto na Bulgária, por exemplo. As coisas por lá, a julgar pelo filme "Glory", atualmente em cartaz no Belas Artes e no Frei Caneca, são mais fáceis –apesar de muito parecidas.

A negociata, da qual temos vaga indicação no início da história, envolve contratos ferroviários de grande monta. Talvez em função do noticiário, alguém resolve se livrar de uma dinheirama, jogando-a num trecho perdido da estrada de ferro.

Tenho de contar um pouco do filme, cujas surpresas e grandes momentos se devem mais aos detalhes da encenação e à extraordinária performance dos atores do que às peripécias do enredo. Um trabalhador paupérrimo da ferrovia (vivido por Stefan Denolyubov, numa atuação digna de Oscar) acha o dinheiro e avisa as autoridades.

Numa cerimônia oficial, em que se reconhecem ainda os restos da cultura socialista, esse herói da honestidade ganha um relógio de presente. O relógio não funciona direito, entretanto, e no dia seguinte o trabalhador volta ao Ministério dos Transportes para fazer um pedido.

Não é que ele queira outro relógio. Quer o antigo, que lhe fora dado pelo pai, com seu nome gravado atrás. Na correria, a chefe de relações públicas do ministério tinha guardado esse relógio para que não fosse preciso trocá-lo na hora da premiação.

Tanto quanto o trabalhador honesto, essa assessora do governo (Margita Gosheva, convincente do alto da cabeça à ponta do salto alto) ocupa o foco da narrativa.

O filme de Kristina Grozeva e Petar Valchanov se alterna entre esses dois pontos de vista. Sem esconder a simpatia pelo homem pobre e honesto, "Glory" atinge uma curiosa imparcialidade ao descrever o que são, no fundo, duas lógicas (e não apenas duas éticas) distintas.

O mundo do trabalhador ferroviário é primitivo, silencioso, inarticulado e lento. Ele tem tempo de sobra para esperar. Deixam-no pendurado no telefone, em busca do relógio velho, por horas, dias, semanas; ele faz e refaz sua viagem de trem até a sede do ministério; em casa, no meio do mato, cria coelhos.

A assessora de imprensa –numa das muitas simetrias sutis desse filme– faz tratamento para engravidar. Mas sua vida está tão perturbada com o esforço de abafar escândalos e neutralizar a imprensa que não tem cabeça para isso –muito menos para o relógio do trabalhador.

Este irá apelar a um telejornalista, interessado menos ainda no caso do relógio, mas disposto a arrancar declarações bombásticas do pobre coitado –incapaz, como se vê desde o início da história, de seguir qualquer roteiro midiático.

Há também uma pequena máfia atrapalhando o caminho: além da corrupção ministerial, ocorrem pequenos roubos de material na ferrovia, e os colegas do trabalhador honesto se armam contra seu comportamento.

Até onde se pode ver pelo filme, algumas diferenças com o Brasil são inegáveis: não há Polícia Federal ou Ministério Público a que se possa recorrer, e o único repórter investigativo em atividade é um apresentador de programas criminais no estilo Datena.

Ao mesmo tempo, "Glory" mostra alguns pressupostos da corrupção que, muito presentes também no Brasil, nem sempre levamos em conta.

As desigualdades de renda, por exemplo. Quando pede para lhe devolverem o relógio, o trabalhador se torna um estorvo para quem tem coisas mais importantes a fazer.

Não sabe se explicar direito; não terá como reclamar; está atrás de uma porcaria sem valor; já cumpriu sua função na cerimônia; é um chato, é um burro, é um... pobre, enfim.

O pobre, no Brasil ou na Bulgária, no setor público ou no setor privado, ainda não é visto como cidadão pleno; é visto, sobretudo, como um atraso de vida, uma atrapalhação. A polícia serve para deixá-lo de bico calado.

Crime de colarinho branco e banditismo puro se aliam mais do que parece. Tráfico, milícias, empreiteiras, governadores, deputados: a história há de ir longe, e, onde existe pobreza, reclamar é sempre um luxo.

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