Almanaqueiras: ou não queiras.

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sexta-feira, 28 de julho de 2017

é possível que a América Latina seja inicialmente isso: uma forma de violência.

Bolaño talvez seja o que melhor entendeu o que é escrever a violência 

Vladimir Safatle


Roberto Bolaño (1953-2003) foi um dos escritores latino-americanos que talvez melhor tenha compreendido o que significa escrever a violência. Pois, no fundo, é possível que a América Latina seja inicialmente isso: uma forma de violência.

Principalmente, uma violência que afeta nossa memória, nossas formas de narrar, que redefine o ritmo de nossa linguagem. Seria fácil falar de seus clichês coloniais, exotismos, da "vida" que pulsa em um ritmo contagiante. Esta seria, no entanto, a mera visão reflexa de um olhar colonial secular, agora internalizado pelos antigos colonizados.

Mas talvez uma visão realmente interna deva partir da maneira como a violência nos forma e nos molda.

"Noturno do Chile", por exemplo, é a longa rememoração da descoberta do amor do jovem padre Sebastián Urrutia Lacroix pela literatura.

Por meio de seus fluxos de memória –frases contínuas que duram, às vezes, duas páginas–, com suas parataxes que justapõem imagens em deslocamento metonímico, Bolaño descreve a história recente do Chile como um grande pano de fundo. À frente do cenário, aparece na verdade o desejo de literatura, quase como um desejo de defesa contra o silêncio deste "lugar esquecido", que no romance ganha o nome de Chile.

Mas esse desejo de literatura não se encontra apenas na rememoração do padre Urrutia. Ele se encontra na própria escrita de Bolaño, em sua maneira de se servir de formas literárias completamente díspares, como a estrutura tipificada do romance policial e os fluxos temporais proustianos, um pouco como alguém que está em um lugar esquecido e que precisa lidar com objetos empoeirados que um dia vieram de fora.

Procurando injetar vida no que já fora usado, às vezes muito usado, Bolaño injeta tragédia onde ela nunca existiu (em romances policiais) e ironia onde ela sempre pareceu estranha (nas formas proustianas).

Notem como já há algo de defesa contra a violência do desterro aqui. Os personagens de Bolaño sempre estão a lidar com um desejo de saber que ganha, no mais das vezes, um tom comicamente enciclopédico.

Assim, em um dos momentos dramáticos do encontro entre o padre Urrutia e seu iniciador no mundo literário, o crítico Farewell, então acamado e doente, Urrutia começa a lembrar da história dos papas. Ele descreverá a vida dos pontífices mais obscuros como se recitasse um verbete da "Enciclopédia Mirador" ou como um aluno que descreve os afluentes da margem esquerda do rio Amazonas.

Em "Estrela Distante", veremos listas inumeráveis de revistas literárias e nomes de poetas obscuros cortando periodicamente o texto.

Que este saber sem lugar e função, tão próprio de um latino-americano que descobre livros antigos em uma biblioteca velha, seja afirmado pela literatura, seja transformado em ironia suprema de uma literatura renovada; eis algo que diz muito.

Pois tal enciclopedismo será a descrição indireta de lugares que lutarão para anular a força de toda experiência de saber, que procurarão o esquecimento contínuo de sua própria violência, o bloqueio de sua própria autorreflexão.

Neste sentido, há de se perceber como a história recente entra nos romances de Bolaño. Ela sempre entra como aquilo do qual seria melhor não falar, como a queda de Allende e a ascensão da ditadura chilena contada em um conjunto rápido de frases curtas. Ou como a ex-mulher de um torturador que dava saraus literários em sua casa enquanto o marido torturava presos políticos no porão, e sua recusa em elaborar aquilo do que fora cúmplice.

A violência deixa marcas em frases encurtadas, em ruas que ficam silenciosas, em imagens que rapidamente se dissolvem, como se ficássemos sem saber se eram ou não reais. É dessa forma que a literatura fala da violência que nos constitui.

Se me permitem uma nota pessoal final, é-me difícil escrever sobre essa violência do silêncio que conhecemos tão bem sem lembrar de que tenho uma filha no terceiro ano do ensino médio que confessou recentemente nunca ter tido aulas sobre a Nova República e os últimos 30 anos da história brasileira.

No que têm razão aqueles que descobriram que os escritores aparentemente mais "fantásticos" (como Kafka e o próprio Bolaño) eram, no fundo, os mais "realistas".

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