Almanaqueiras: ou não queiras.

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sexta-feira, 16 de junho de 2017

Admiro cada dia mais os raros e corajosos que expõem sua condição de "apenas um merda"

Como diria o...

Tati Bernardi 




Nunca vou esquecer a noite em que, há quinze anos, movida pelo (típico da idade) pavor de sentir tédio, fui parar na casa de um "cantor" desconhecido de banda tosca de bar podre da Barra Funda. Ele só tinha que ter me beijado, mas resolveu mostrar sua imensa biblioteca, contar que era crítico literário, ler trechos de Borges em espanhol e, quando por fim começou uma ladainha sem fim sobre E.E. Cummings e William Carlos Williams, eu fiquei na dúvida se era uma espécie de derrame cerebral que o fazia repetir fonemas ou apenas chatice mesmo. Corri dali como se corre do Ebola.

Tive um namorado empanturrado pela vida dupla na ponte aérea que, quando descoberto e imediatamente largado, passou a me mandar diariamente poesias do Drummond. O máximo que conseguiu foi me deixar bastante obcecada pelo poeta. O Drummond era genial, mas você ter decorado um trechinho dele não faz de você nada além de um cara que decorou um trechinho de um cara genial. É o mesmo que ver a sessão da tarde e querer ser salva pelo dublador do super-herói.

Ano passado lancei um livro e comecei a ser chamada para entrevistas e feiras literárias. Sempre na companhia de outros escritores muito bem inseridos no vício da citação desenfreada, fui literalmente engolida. Enquanto eu tentava dizer algo genuinamente ruim e não decorado, o coleguinha ao lado vomitava uma fileira de frases de famosos intelectuais, nomes literários de peso, pensamentos militantes de mortos ovacionados, autores menos conhecidos para demonstrar que "eu vou além dos básicos" e um ou outro popular para agraciar a plateia com o charminho maroto "não fico apenas nos clássicos".

Então era só isso? Viajei até essa cidade pra ficar aqui enfileirando meus estudos? Batendo punhetinha com meu diploma pra plateia gozar? Porque sou humilde demais pra falar de mim então mando logo um "segundo Rubem Braga", "segundo Garcia Marques", "segundo Riobaldo em 'Grande Sertão: Veredas'", segundo "uma leitura contemporânea de Lacan". Gente, por Deus, que cazzo VOCÊ, essa pessoa sentadinha e assustadinha aí, acha das coisas? Pode até ser "segundo" um milhão de coisas que leu e viu, mas o que criou a partir disso?

Agora nada se compara ao quão deprimente era trabalhar em propaganda. Hoje aturo pessoas que falam em Dostoiévsky pra discutir piada no Facebook, mas já tive que aturar gente que falava "segundo o Seu Coisinha criativo da GBDfuckers, o bom anúncio é aquele que...". A gente endeusava uns caras tão bobos que chega a dar arrepio de ojeriza pelo corpo. Tipinhos que, com o advento das redes sociais, foram obrigados a dizer mais do que um título engraçadinho pra vender lava-louças –e não saiu nada dali. Ou até saiu: uma adaptação do título de lava-louças para o que ele acha da vida (citando a si mesmo).

Reunião de roteiro se tornou a coisa mais chata do mundo. São poucos os que sabem contar uma história, fazer diálogos reais, causar uma emoção (eu inclusa nisso tudo, mas chego lá). Porém, os sargentinhos de livros técnicos têm muitas certezas: onde fica o plot de virada, onde fica o "incidente incitante", e metem até o Aristóteles na jogada. Segundo "Robert Mckee", segundo "Syd Field"... Admiro cada dia mais os raros e corajosos que expõem sua condição de "apenas um merda", esquecendo o nome dos livros que mais amaram e jamais agraciados por um curso que os ensinou "a ser" qualquer coisa. 

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