Almanaqueiras: ou não queiras.

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sexta-feira, 31 de março de 2017

Nem tudo é fiasco no reino do purismo.

Lição de Machado a purista: abuso de estrangeirismo se combate com humor 

Sergio Rodrigues 




Aportuguesadas ou não, empregadas fora de contexto ou não, mão na roda ou não, exibicionistas ou não, as palavras estrangeiras formam uma nuvem em torno da nossa língua. Realizou?

Talvez a maioria viva bem com isso, acreditando que, para usar o modismo deste outono, "língua é sobre dar o recado" e o resto é frescura. Também não falta quem se angustie.
Será que existe um limite razoável para as importações? Se a língua está viva –e se mexendo!–, só nos resta relaxar enquanto as fábricas viram plantas?

Relaxar costuma ser bom conselho. Se vingar a acepção que o inglês "plant" fez crescer no vocábulo "planta" como um galho enxertado –bem, perdeu, playboy. O conjunto dos falantes é soberano. Mas essa história não acaba aqui.

Na distinção famosa de Ferdinand de Saussure, pai da linguística, uma coisa é língua e outra é fala. A primeira, social, precede e ultrapassa cada um de nós. A fala, sim, é a casa do falante, onde ele é rei.

A fala é o recorte pessoal feito numa tela imensa de bordas indistintas. É um parque de diversões e também o domínio das nossas decisões éticas, estéticas e afetivas.

Se a "planta" industrial lhe cai mal, por parecer uma tradução preguiçosa que denota servilismo cultural e penúria educacional, não admita que ninguém lhe negue esse direito.

Sim, a comédia involuntária produzida pelos puristas de cem anos atrás ensina que argumentos do gênero costumam perder. Isso não desautoriza o olhar crítico, a ponderação, o humor –pelo contrário! O embate entre Machado de Assis e Castro Lopes é a melhor ilustração da diferença entre o crítico e o purista.

Machado e quem? Hoje ninguém fala dele, mas Antônio de Castro Lopes (1827-1901) foi o príncipe dos puristas. Médico e latinista, ganhou fama ao propor a substituição de termos franceses por neologismos cultos que ele mesmo criava.

Uma vez que "chauffeur" (sem aportuguesamento na época) era francês e "motorista" dormia no limbo dos neologismos futuros, o autor do livro "Neologismos Indispensáveis e Barbarismos Dispensáveis" lançou a candidatura de "cinesíforo".

"Reclame" (anúncio publicitário) devia dar lugar a "preconício", "pince-nez" a "nasóculos", "abat-jour" a "lucivelo", "avalanche" a "runimol" etc. Nada disso pegou.

Bom, quase nada. Só faremos justiça a Castro Lopes se lhe dermos crédito pela criação da palavra "cardápio" em resposta a "menu". Trata-se de um êxito impressionante. Seu "convescote", substituto de "pique-nique", é menos usado, mas também está vivo. Nem tudo é fiasco no reino do purismo.

Machado de Assis dedicou algumas crônicas à cruzada quixotesca de Castro Lopes. Tratava o homem com ironia, chamando-o de "nossa Academia Francesa". A rigidez do latinista contrasta comicamente com a postura nuançada e cheia de humor do maior escritor brasileiro.

"Nunca comi 'croquettes', por mais que me digam que são boas, só por causa do nome francês. Tenho comido e comerei 'filet de boeuf', é certo, mas com restrição mental de estar comendo 'lombo de vaca'", escreveu Machado em crônica de 7 de março de 1889.

Ambos revelam estranhamento diante das palavras estrangeiras. Um as rejeita em bloco, o outro ri delas e de sua própria confusão. Entre o purista e o escritor, meu lado está escolhido desde sempre.

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