Almanaqueiras: ou não queiras.

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sexta-feira, 31 de março de 2017

estamos em 2017 e é incrível que um livro desse seja necessário, mas é.

Para educar crianças feministas 


Mariliz Pereira Jorge 





Por curiosidade comprei o livro "Para Educar Crianças Feministas", de Chimamanda Ngozi Adichie, mesmo não tendo filhos. Se você tem uma menina, compre. Se tem um menino, compre. Se não tem a menor pretensão de procriar ou adotar, compre também, pode ajudar a não cometer atrocidades com os filhos dos outros.

É um livro pequeno, de fácil leitura, em uma horinha dá para ir até o final. Chimamanda fala desde a necessidade de a mulher ser uma pessoa completa e não transformar a maternidade em sua única razão de viver, passando pelo papel dos homens na divisão das tarefas da casa e na criação dos filhos.

O foco, no entanto, são as meninas e a lista inclui diminuir as cobranças sobre aparência, falar sobre sexo e relacionamentos, não dividir as atividades por gênero, incentivar a ler, a fazer muitas atividades e a praticar esportes. Em resumo, é um baita guia para que as meninas cresçam em condição de igualdade, que não sejam criadas para serem submissas, inseguras, frágeis. Estamos em 2017 e é incrível que um livro desse seja necessário, mas é.

Tenho um irmão 11 meses mais novo, diferença imperceptível em todas as fases da vida. Fomos criados com dois primos, quase da mesma idade. Uma menina no meio de três meninos. Tinha tudo para que a princesinha da família se transformasse numa mulher frágil e insegura. E isso só não aconteceu porque recebemos educação idêntica no que se refere a direitos e deveres. Na verdade, em alguns casos eu ganhei direitos antes deles por ser a mais velha, ainda que apenas ligeiramente.

Só recentemente me dei conta de como fui privilegiada, porque jamais ouvi dos meus pais ou dos meus tios que não poderia fazer alguma coisa na vida "por ser menina". Mas vi amigas e conhecidas serem podadas a vida inteira. Inclusive garotas de gerações mais novas do que a minha. Isso continua acontecendo hoje com milhões ao redor do mundo.

Você é menina. Não faça isso. Não corra desse jeito. Você vai se machucar. Seja boazinha. Tenha modos. Feche as pernas. Não peça. Não transe. Não sorria demais. Não fale alto. Não seja escandalosa. Não pode, porque é menina. Ele pode, porque é menino. Essas frases não fizeram parte da minha educação.

Pelo contrário. Aprendi muito cedo a fazer tudo que os meninos faziam. Meu pai nos ensinou a esquiar na água, a nadar, a praticar esportes coletivos. Aos oitos anos ganhei uma mobilette e entrei para um grupo de escoteiros com meu irmão e meus primos. Ok, detestei acampar, mas gostar de fazer xixi no meio do mato e tomar banho no rio gelado não me fez menos preparada para enfrentar o mundo.

Fui educada dessa forma, apesar de só ter ouvido falar em feminismo na faculdade, e é provável que meus pais apenas fizeram o que achavam correto: criar uma menina e um menino exatamente da mesma forma. Por que? Porque é assim que deveria ser.

Lembro de uma situação em que taxistas colocaram um cone no final do ponto, ocupando uma vaga normal. Pedi que tirassem e ouvi que o espaço era muito pequeno. No fundo, eles queriam dizer que uma mulher não entraria com o carro ali. Insisti e, sob o olhar de cinco homens com os braços cruzados, me encarando, entrei lindamente no lugar, saí do carro e lá fui eu rebolando num salto altíssimo. Quase virei e mandei uma banana. Aqui é girl power. Meu pai ficaria orgulhoso, se tivesse visto a cena. Porque foi o tipo de criação que ele me deu, de não deixar que ninguém dissesse o que posso ou não, por ser uma menina.

Mas sabemos que não é o que acontece e, por isso, o mundo ainda é um lugar mais fácil para a maioria dos meninos, enquanto as meninas ainda precisam se esforçar mais porque são podadas, cobradas, fiscalizadas mesmo que em pequenos detalhes. Os detalhes também importam.

Mais da metade das garotas interrompe as práticas esportivas antes dos 17 anos porque sentem-se menos capazes do que os garotos. Depois disso, a atividade física perde o caráter lúdico e só faz parte da vida delas com o intuito de emagrecer.

Gravidez na adolescência é um problema crônico em todas as classes sociais, com consequências mais graves para as meninas pobres. Quando o assunto sexo vem à tona, em geral, é como ameaça. Pais e educadores tratam a sexualidade de forma diferente para meninas e meninos. Meninos são incentivados a transar muito cedo, enquanto as garotas... sabemos o que acontece com as garotas que começam a vida sexual muito cedo sem orientação. Engravidam. E ficam mal faladas, inclusive por outras meninas, mesmo que saibam o que estão fazendo.

Era assim na minha adolescência, continua igualzinho em 2017. E tudo se reflete na forma como a mulher vai se enxergar na vida adulta e na forma como se relaciona na vida pessoal e como se comporta profissionalmente.

Ninguém precisa ser feminista de carteirinha para educar crianças de forma igualitária. Chimamanda inclusive critica o pressuposto de que as mulheres seriam moralmente melhores do que os homens, muitas vezes presente nos discursos de gênero. "Não são. Mulheres são tão humanas quanto os homens. A bondade feminina é tão normal quanto a maldade feminina."

Por isso o livro dela é tão essencial porque não trata as mulheres como coitadas. Ele aponta até os erros cometidos por nós que perpetuam algumas situações machistas que vivemos no dia a dia. Aborda as questões de forma simples e mostra caminhos objetivos.

Não é necessário concordar com tudo, obviamente. As pessoas são diferentes e o mais importante do livro é fortalecer a ideia de que meninas e meninos devem ser criados com igualdade. Não concordo, por exemplo, quando Chimamanda questiona o uso da palavra "princesa", que seria carregada de fragilidade e pressupõe a espera de um príncipe que irá salvá-la.

Claro que a linguagem na educação é importante, mas não vejo problema em chamar uma criança de princesa e lhe dar a opção de brincar de Mulher-Maravilha ou Homem de Ferro –como eu já vi. É o melhor caminho para que isso tudo seja apenas fantasia infantil e não formação de personalidade.

Tive muitas bonecas. E um tanquinho para lavar roupa, um conjunto completo de cozinha, ferro de passar. E adorava brincar de princesa. Que coisa, como não morro de amores pela cozinha e beijei muitos sapos pela vida? Porque tive escolhas, porque nunca achei que minha condição feminina me privasse de qualquer coisa. É isso que uma educação feminista faz: dar opção de uma mulher ser o que ela quiser, desde quando ainda é uma menina.

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