Almanaqueiras: ou não queiras.

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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Saudade é um sentimento que adormece ressentimentos.

Quando eu me chamar saudade

por Marceu Vieira





O título aí de cima foi decidido com um pedido de licença às memórias do Nelson Cavaquinho e do Guilherme de Brito, autores do samba tão bonito, tão bonito mesmo, que leva este nome. Samba tão delicado e belo toda vida.

A bênção, seu Nelson. A bênção, seu Guilherme.

Fui ao enterro do Nelson. Eu era um guri, estagiário da “Tribuna da Imprensa”.

O chefe de reportagem me mandou ao cemitério de Irajá fazer a cobertura. O som seco do surdo solitário da Mangueira, batendo, batendo, enquanto o caixão descia, aquele som nunca me saiu da lembrança. Nunca vai sair.

Com seu Guilherme, que morava ali em Bonsucesso, num prédio sem elevador, tive a sorte de conviver um pouquinho. Numa coincidência feliz pra mim, e que eu, de verdade, não merecia, recebemos juntos – ele, Alfredinho do Bip Bip e eu – o Prêmio Carioca da Gema, criado pelo meu amigo Lefê Almeida (outra saudade grande), no bar Carioca da Gema, na Lapa, em algum ano da primeira década de 2000.

Pro meu orgulho, orgulho do tamanho de um trem 33 da Central, uma foto de nós três, naquele momento do prêmio, permanece emoldurada numa parede do Bip Bip, o botequim do meu amigo-pai-irmão-filho 
Alfredinho, em Copacabana.

São lembranças que me vêm ao pensamento nesta madrugada de carnaval, como também me vem à cabeça agora uma saudade imensa dos meus amigos queridos de Morro Agudo – Pedro-Zeca, Totó, Fernando, Miguel, Cláudio, todos eles, que vivem em cada célula minha e sabem disso.

Quando eu me chamar saudade, quero, se puderem, todos eles perto de mim na despedida.

Quero também que os meus três filhos riam muito, muito mesmo, lembrando o que vivemos juntos – e que também riam muito, mas muito, lembrando o meu amor eterno e sem limites por eles, e o deles por mim.

Quando eu me chamar saudade, que nem o personagem do samba do Nelson Cavaquinho e do Guilherme de Brito, quero ser cremado e ter minhas cinzas jogadas por aí. De preferência, num carnaval.

Um pouco jogadas em Morro Agudo. Meus amigos-irmãos vão saber como fazer.

Quero também outro punhado atirado num canto da Rua Cardoso Júnior, se possível na presença dos meus irmãos desde sempre Janjão e Marcinho, e também na do meu amigo-parceiro Nuno. Se puderem.

Peço que se guarde, por favor, um punhadinho pra calçada do Bip Bip, onde fui feliz todas as vezes.

E mais um último punhado quero que seja depositado na gaveta das calcinhas de Adalgisa.

Pode ser tudo só na intenção. Mas, por favor, não me contrariem.

*  *  *  *

Saudade é um sentimento bom.

Saudade é um sentimento que adormece ressentimentos.

Saudade, quando é correspondida, acrescenta sentimento bom ao que já é sentimento bom.

Quando a gente chora de saudade, a alma da gente sorri.

Saudade é o principal sintoma do amor.

*  *  *  *

O que será que puseram naquela cachaça de gengibre no bloco de ainda há pouco?

*  *  *  *

A beleza de imagem que ilustra esta pequena crônica de carnaval é de Candido Portinari (1903-1962).



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