Aborto no Brasil não deveria ser definido pelo Legislativo?
A decisão de três ministros do Supremo Tribunal Federal afirmando inexistir crime quando o aborto é praticado até o primeiro trimestre da gestação não terá efeitos práticos, além de barrar o processo dos réus envolvidos no julgamento de terça-feira.
Afaga os militantes da causa da descriminalização. Um ou outro juiz que comunga do mesmo ideal poderá até se basear no precedente para beneficiar alguém. Mas é um caso isolado, não vincula as instâncias inferiores do Judiciário.
O ministro Luís Roberto Barroso acredita que a decisão estimula políticas públicas alternativas, mas, de fato, nada pode ser feito. Médicos não irão interromper a gravidez baseando-se na jurisprudência e se o fizerem estarão sujeitos a processos e a juízes que pensam de forma diferente. Mulheres e meninas continuarão submetidas a "clínicas" clandestinas e a sofrer as consequências perversas da legislação em vigor.
Questão de tamanho vulto cultural não deveria ser definida pelo Poder Legislativo, com ou sem consulta plebiscitária? E a clássica separação de Poderes? Como não se trata de declaração de incompatibilidade da norma com a Constituição ou de nova interpretação de seu conteúdo, pode o STF se substituir ao Parlamento e reescrever o texto do Código Penal, fixando o prazo de três meses? Não seria o caso de submeter tema tão controvertido ao plenário do tribunal, para não fomentar cenário de incerteza jurídica?
Em semana marcada pelo desconforto institucional (é constrangedor ver o país radicalmente dividido entre duas porcarias, assunto para outra coluna: o pacote de medidas contra a corrupção da Lava Jato e o texto aprovado pela Câmara dos Deputados), com parlamentares tentando encurralar juízes e promotores e, por outro lado, como se fossem funcionários do bem, juízes e promotores tentando impor, goela abaixo, um conjunto temerário de reformas de inspiração messiânica, a questão do aborto surge como ingrediente adicional na crise entre Judiciário e Legislativo.
A religiosidade, que não se resume à bancada evangélica, tem representação expressiva no Congresso. Pesquisas do Datafolha revelam que 67% da população eram (em novembro de 2015) a favor da punição ao aborto e que, mesmo em relação aos casos do vírus da zika e da microcefalia, 58% dos entrevistados (em janeiro de 2016) eram contra a permissão de interrupção da gravidez.
De olho na reeleição para a presidência da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ) criou imediatamente uma comissão para "rever" a decisão do STF.
Foi requerida urgência para a apreciação do Estatuto do Nascituro, projeto de lei obscurantista que, se aprovado, estabeleceria entraves para a realização do aborto nos casos atualmente permitidos pelo Código Penal (para salvar a vida da gestante e na hipótese de estupro).
Sem um programa de convencimento da população brasileira a respeito do tema, capaz de ampliar a base de aceitação do aborto, inclusive entre mulheres, como exercício de um direito, não um estímulo, a disputa tende a ser vencida pelas forças conservadoras.
Imaginar que agentes iluminados do poder público podem impor seu pensamento "esclarecido" ao resto do país é ingênuo e, eventualmente, contraproducente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário