Almanaqueiras: ou não queiras.

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quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Vender certezas e delírios é sempre um bom negócio, porque sempre há alguém que se sente injustiçado, esquecido, enganado, sem rumo e sem sentido.

Na clínica psiquiátrica clássica, certeza absoluta é o traço distintivo do delírio

Contardo Calligaris 

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"No Fim do Túnel", de Rodrigo Grande, e "A Luz entre Oceanos", de Derek Cianfrance, são filmes muito diferentes. Prefiro os afetos mais perigosos da turma do filme de Grande. Resisto aos grandes sentimentos que estão ao centro do filme de Cianfrance. Também prefiro o espaço sufocante da cave de "No Fim do Túnel" às grandes paisagens (lindas demais) de "A Luz entre Oceanos".

Mas recomendo os dois filmes porque, em ambos, é difícil decidir se os protagonistas erram e quanto e como: o espectador fica numa incerteza moral, com a qual me sinto em casa.

Ao contrário, as certezas morais peremptórias me inspiram antipatia e um pouco de medo. E, por favor, que ninguém levante o exemplo das prescrições morais que todos acharíamos sempre válidas: justamente, qualquer um de nós saberia escrever uma longa lista de situações em que não fica claro se devemos ou não matar, furtar, respeitar o pai e a mãe etc.

Desconfio das certezas morais porque elas têm consequências inquietantes. Quem tem uma certeza moral absoluta sempre acaba querendo impor suas regras: vou te fazer viver do jeito "certo", mesmo que você não concorde, e será pelo teu bem.

Ou seja, as certezas de um ou de alguns indivíduos se transformam em ameaças à liberdade de todos os outros. Se eu for contra o casamento gay, deveria me bastar poder não ser gay e não casar. Por que me importaria impedir outros de serem gay e casarem? Resposta: pela certeza absoluta e incondicional de minha crença, que, aos meus olhos, a torna válida para todos.

Uma tamanha certeza é surpreendente, ao menos para mim: não me lembro de ter acreditado em ideias sem também duvidar delas, ou melhor, sem eu mesmo defender pontos de vista opostos diante de meu perplexo tribunal interior.

O que é, então, uma certeza suficiente para que, além de minha crença orientar minha vida, eu queira que ela oriente a vida de todos?

Na clínica psiquiátrica clássica, a certeza absoluta é o traço distintivo do delírio: uma tremenda crise subjetiva é compensada pela adesão a uma crença inflexível, que vem a ser o delírio.

A certeza é a parte crucial da função que o delírio preenche: num crepúsculo em que posso me perder (na loucura, por exemplo), uma crença absoluta e inabalável funciona para mim como uma âncora de salvação.

O que faz que uma ideia seja delirante, então, não é sua extravagância ou sua pouca verossimilhança, mas a certeza de quem acredita nela.

E o excesso de certeza é a prova de que estou delirando. Desse ponto de vista, um dogma, defendido e propagandeado com uma certeza sem falhas, é sempre delirante.

A própria certeza, aliás, faz que o indivíduo que delira não possa reconhecer que ele está delirando: quanto mais ele delira, mais ele tem certeza que não delira.

Agora, é óbvio que alguns discursos têm uma propensão especial a serem delírios: são todas as pregações que tentam arregimentar, converter, ganhar à causa do orador. O discurso religioso e o político são facilmente delirantes porque eles quase sempre propõem uma crença firme como remédio às dúvidas, aos medos, às incertezas de multidões que talvez possam ser convertidas em rebanhos. Exemplos.
Num breve espaço de tempo, Donald Trump foi favorável e contrário ao aborto, e também declarou que as mulheres que tentam abortar devem ser punidas e que não devem ser punidas. Nenhuma dessas ideias é um delírio em si. A própria contradição tampouco é um delírio.

O que permite que elas todas funcionem como um delírio possível é o caráter peremptório, normativo, ou seja, a certeza com a qual elas foram expressadas e propostas. Nada de "ao meu ver", "eu acho que", "parece-me que". Só um "dever" incontestado.

Mas cuidado: Donald Trump não esteve delirando, ele apenas foi mestre em propor o que seus seguidores queriam: uma certeza (que funcionasse como um delírio) num momento em que eles têm a sensação de ter perdido seu lugar no mundo. Você suspeita que foi esquecido por Deus e pela história? Pois aqui está o antídoto: uma crença, qualquer uma, à condição que seja absoluta.

Vender certezas e delírios é sempre um bom negócio, porque sempre há alguém que se sente injustiçado, esquecido, enganado, sem rumo e sem sentido.
Última hora: a coluna foi entregue na terça (8) às 17h; nada parecia sugerir que Donald Trump ganharia as eleições presidenciais dos EUA.

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