Almanaqueiras: ou não queiras.

Almanaqueiras: ou não queiras.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Não sei lidar com gente que me odeia. Quer dizer, na teoria, tô pouco me lixando. Tenho até certo orgulho de ser odiado por quem só odeia coisa boa: Chico, Caetano, Carnaval e amor livre – tudo o que faz essa vida valer a pena.

Que diferença faz o afeto das pessoas que não te conhecem?

Gregorio Duvivier 

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Estava andando na rua Pacheco Leão quando encontrei um senhor careca de rosto familiar. Berrava com voz estridente e ciciava deixando escapar perdigotos a cada vez que trocava o S pelo F. Demorei a perceber que se tratava de um articulista de direita. "Vou escrever fobre efa palhafada na Folha de Fão Paulo!" dizia pra uma manifestação de estudantes. "Calma, Reinaldo."

Abracei-o como abraçam os hippies de São Tomé das Letras: o braço direito por baixo e o esquerdo por cima, pros corações se tocarem. Senti sua respiração baixar aos poucos. "Obrigado", sussurrou no meu ouvido. "Que abraço gostoso, Greg. Era tudo o que eu precisava." Veio aqui pra casa. Fumamos um homegrown. Jogamos Fifa. "Como é que eu perdi tanto tempo te odiando?" ele dizia. "Vofê é foda!"

Acordei suando em bicas. "Preciso voltar a fazer análise." Não sei lidar com gente que me odeia. Quer dizer, na teoria, tô pouco me lixando. Tenho até certo orgulho de ser odiado por quem só odeia coisa boa: Chico, Caetano, Carnaval e amor livre – tudo o que faz essa vida valer a pena. Na prática, o inconsciente não para de me lembrar que odeio que me odeiem. Mesmo que a pessoa seja odiável. Escrevo cartas mentais: "Querida Suzane von Richthofen, desculpe qualquer coisa! Não quis te ofender quando te chamei de assassina. Sei que você não fez por mal."

Por isso, preferia não ter descoberto que a gente recebe uma avaliação do motorista do Uber –e essa avaliação tá disponível no aplicativo. (Sim, igual àquele episódio de Black Mirror. Só que de verdade.)

Descobri minha nota: 4.61. Sobre 5. Parecia boa. Até me contarem que Uber é tipo escola de samba, onde qualquer coisa que não seja a nota máxima é um desastre. (Lembro de ficar perplexo quando pequeno: "Esse cara tá chorando por causa de um 9.2? Se ele visse meu boletim...")

Não sei o que fiz pra merecer esse 4.61. Não deixo o Uber esperando enquanto faço compras do mês (sim, tem gente que faz isso). Não encho o bolso de balinhas pra comer mais tarde (tem também). Bato a porta com delicadeza. Não sei onde errei.

Só sei que, quando vi, estava abraçando motoristas, oferecendo balinhas, elogiando a temperatura: "Uau, 23 graus e meio! Que perfeição". O motorista me olha enviesado: "Quem é que elogia a temperatura?". Tenho certeza de que essa noite vou sonhar com motoristas de Uber me amando muito: "Gregorio, você é o que eu chamo de cliente nota 5!". "Para com isso, Heitor, você é que é um fofo!", responderia. E voltaríamos a jogar Playstation.


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