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domingo, 27 de novembro de 2016

"Esse sujeito mexeu com o planeta, chacoalhou o planeta. Apesar de todas as mazelas e misérias que todo mundo conhece, na balança da história o saldo é positivo"

Fernando Morais: “De sua ilhota, Fidel chacoalhou o planeta”
Autor dos clássicos do jornalismo brasileiro sobre Cuba comenta morte de cubano


FLÁVIA MARREIRO


Fernando Morais decidiu acompanhar sua manhã de calor, telefonemas frenéticos e escritura neste sábado bebendo chá de moringa. O autor dos clássicos do jornalismo brasileiro sobre Cuba (A ilha, de 1976, Os últimos soldados da Guerra Fria, de 2011) ingeria a planta medicinal que lhe fora recomendada pelo próprio Fidel Castro e a cena descrita, horas depois do anúncio da morte do líder cubano, tinha algo de ritual. "Fidel tinha encontrado essa moringa, um complexo vitamínico orgânico. Ele recomendou para mim e para Lula e acreditava que grande parte de sua resistência naquela idade e depois da cirurgia se devia a isso. Não sei se Lula fez, mas eu estou com vidro de moringa de Fidel na minha mão."

A visita de Morais e do ex-presidente Lula, sobre quem ele escreve uma biografia, a Havana, foi nos primeiros meses de 2013 e seria a última vez que ele veria Fidel. O mundo ainda era outro e Hugo Chávez, o aliado venezuelano que deu sobrevida ao regime cubano, agonizava na ilha. De lá para cá, houve o degelo com os Estados Unidos de Barack Obama, esperado por cinco décadas, o giro à direita de parte da América Latina, a decadência acelerada da Venezuela, a surpreendente eleição de Donald Trump. Cuba, em crise econômica e equilíbrio precário desde a queda da URSS, foi tomando e digerindo todos os eventos em pequenos goles, ao passo em que acontecia o lento fade out do seu controverso líder máximo. Primeiro foi a doença em 2006, que o faria encerrar em Córdoba, em uma Cúpula do Mercosul na Argentina, sua extensa carreira de viagens internacionais. Dois anos depois viria a renúncia formal e a entrega do poder, não sem tutela, a seu irmão Raúl. "É um processo de ajuste do regime ao mundo que vem sendo construído há dez anos", diz Morais. 

É por isso que o escritor brasileiro não acredita em sobressaltos no futuro imediato da ilha. Entre as teorias na praça, está sempre a de que Fidel Castro era um freio nos anseios de abertura capitalista do irmão no comando. Morais vê diferenças entre os dois Castro - não crê que Fidel houvesse levado adiante o investimento do Porto de Mariel (com empréstimo brasileiro e construção da então toda poderosa Odebrecht) nos moldes da abertura chinesa de há 30 anos -, mas não o suficiente para esperar uma guinada brusca. De todas as visitas a Cuba nas últimas décadas, do convívio com políticos próximos de Havana, como parte da cúpula petista e chavista, o jornalista diz nunca ter ouvido reparos graves de Fidel a Raúl. "Nunca ouvi alguém dizer que ouviu dele, Fidel, algum reparo. O único sintoma que há é que Fidel estaria reticente é com a aproximação com os EUA", afirma, citando o enigmático e irônico texto que o mais velho dos Castro escreveu criticando Obama após a visita à ilha deste ano.

Sobre Miguel Díaz Canel, de 56 anos, o vice-presidente cotado como sucessor de Raúl (que já tem avançados 85 anos e que prometeu deixar o poder em 2018), o escritor diz ser um "fazedor", um gestor de quem tem boa impressão, ainda que não pareça muito convencido de que ele herdará de fato o comando da ilha. Minimiza, porém, o risco de um movimento interno dos militares, que acumulam influência em Cuba por comandarem as empresas mais rentáveis e abertas. "Disso eles aprenderam com os soviéticos, sobre transição."

Se lança pistas para a reportagem ("já reparou um que sempre está na escolta de Raúl"?), Morais prefere não entrar em detalhes que não tenha apurado em campo como jornalista. "Sou um cubanófilo, não sou um cubanista", reservou-se na conversa com o EL PAÍS, enquanto se preparava para escrever para seu site, o Nocaute, um texto de corte pessoal sobre seus encontros com Fidel. Incluiria a vez que que encontrou Lula e Frei Betto ao lado do líder cubano numa visita a Manágua, em 1980 _o registro da carona de Fidel em seu avião é o que ilustra essa reportagem e também decora o escritório do jornalista. Ou quando enviou, numa operação que envolveu até Chico Buarque, um casal de cachorros, da raça fila brasileiro, para o comandante. Talvez mencionasse também o primeiro dos encontros, na década de 70, no final da viagem que fez para escrever A ilha. Fruto de uma rara visita de um jornalista brasileiro ao ícone comunista, sonho dos guerrilheiros brasileiros e pesadelo da ditadura, o livro se transformou em clássico instantâneo no Brasil. O cubano não deu entrevista para a obra, mas cumpriu a promessa de falar a Morais anos depois, em uma entrevista de 12 páginas para a revista Veja. A ilha seria atualizada com um acurado e ácido prefácio da Cuba do auge da crise pós-queda do mudo de Berlim, nos anos 90. Como em Os Últimos Soldados da Guerra Fria, sobre a saga dos espiões cubanos então presos nos EUA, a fina prosa jornalística, com descrição, precisão e informações exclusivas, está elegantemente longe do discurso do militante de esquerda das redes sociais.

"A natureza foi até generosa com Fidel. Ele deixou seu legado, a revolução cubana. O atrevimento, a ousadia de fazer isso num país absolutamente insignificante do ponto de vista econômico, de população, uma ilhota como todas as outras do Caribe. Esse sujeito mexeu com o planeta, chacoalhou o planeta. Apesar de todas as mazelas e misérias que todo mundo conhece, na balança da história o saldo é positivo", afirma Morais, que ainda não sabe se vai ao funeral em Havana. "Se der, eu vou. Vou ligar pro Lula".

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