Almanaqueiras: ou não queiras.

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quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Um surto psicótico

Meados da loucura

Marcelino Freire



E Dona Belmira disse que tinha comido cravo-da-índia e adorado. 
Josué contestou:
_ Cravo! Gostoso!
_ É sim! Cravo, ora! Lindo cravo, com sementinhas pequenas, rosadas e doces...
Josué sorriu:
_ Rosadas e doces! Tem certeza que era cravo?
_ Cravo-da-índia, com coroa e tudo.
_ Coroa?
_ É. Uma coroazinha... Seu besta, tu não sabe que cravo tem coroa?
Josué não queria contrariar a anciã com oitenta e nove anos, quase cega e dona de todo o orgulho de uma vida.
Procurou não contrariá-la, mas não podia ficar quieto diante de tamanho engano:
_ Dona Belmira, meu amor, não seria romã? 
A velha pensou por um minuto e respondeu:
_ Sim! E o que eu estava falando?
_Cravo-da-índia!
_ Eu?
_ É. Estás maluco mesmo... akakakaka! Eu! Eu disse romã. Imagine comer cravo-da-índia...
Olhou para Josué de cima abaixo:
_ Está ficando velho, meu caro?
_ Eu!
_ É. Trocando as coisas. Eu hem!
Josué retrucou:
_ Ora, quem falou foi a Senhora.
_ Akakakakakakakakkakakaka! Eu não estou tão velha pra trocar uma romã por um cravo-da-índia e ainda achar bom... 
_ Mas foi o que aconteceu – insistiu Josué.
_ Josué, meu filho. Quando a gente vai ficando velha é normal trocar algumas coisas, esquecer outras e até delirar. Mas quando trocamos um cravo por uma romã, é sinal de endoidamento.
_ Concordo!
_ Pois é... Devia procurar um médico...
_ Eu!
_ Evidente! Está demonstrando total falta de olfato e percepção.
Josué balançou a cabeça...
_ Dona Belmira. A Senhora foi quem falou em cravo-da-índia.
_ Eu falei romã! Romã! Entendeu?
_ Falou crav...
Dona Belmira se pôs em pé.
_ Josué. Tu se lembras do caso da Mariana. Aquela filha do dono do açougue São Lourenço?
_ Nem me lembre... 
_ Pois vou lembrar. Tu beijou a irmã dela pensando que fosse ela. Lembra?
_ Mas eram gêmeas...
_ Mas a tal da Maria tinha uma verruga enorme no nariz...
_ Não era tão grande assim – cortou Josué. 
_ Perceptível...
_ Estava escuro...
_ A lâmpada do terraço estava acessa...
_ Mas a pilastras fez sombra...
_ E tu beijou... quase... bom, quase fez mais, seu despeitado.
Josué também se levantou:
_ Isso não tem nada a ver com o fato da Senhora trocar as frutas.
_ Frutas Josué. Cravo-da-índia é uma especiaria... Pelo amor de Deus. Fruta é romã. Pelo Cristo! Está cada vez pior mesmo.
_ Eu sei que cravo-da-índia é uma especiaria. Sou botânico, lembra?
Dona Belmira ergueu os olhos e se benzeu.
_ Tanto pior! Acho que deve se demitir. Imediatamente.
_ Me demitir?
_ É, se aposentar. Afinal, já pensou o mal que pode causar trocando as coisas desse jeito.
Josué perdeu a serenidade. Contrário a sua índole aumentou o tom:
_ Eu! Sou ótimo funcionário, fique a Senhora sabendo...
Dona Belmira voltou a sentar. Arregalou os olhos e se benzou:
_ Calma, Josué! Nos conhecemos a quantos anos?
_ Quinze... não, acho que vinte...
_ Cinquenta e cinco anos, Josué. Eu te peguei no colo... 
_ É... talvez seja...
Dona Belmira pegou a mão de Josué o fez sentar-se:
_ Esta vendo? Esqueceu disso. Eu te peguei no colo, fiz o parto de sua esposa e batizei sua filha mais velha. Como pôde esquecer isso, meu filho!
_ Bem. Uma troca de datas... Não significa nada.
_ Claro que significa. Você está com sérios problemas. Vou falar com a Madalena...
_ Falar o que?
_ Ora. Você precisa ser internado. Imediatamente... Está doente!
_ Eu!
_ Sim... Você meu filho. Te acalma, pode ser apenas um surto psicótico. 
Josué se levantou novamente:
_ Olha aqui, Dona Belmira. Eu te respeito pra caralho....
_ Palavrão agora... Loucura! Loucura!
Josué apontou o dedo em riste:
_ Louca é a Senhora que troca uma romã por um cravo-da-índia...
Naquele exato instante um cachorro foi atropelado pelo caminhão do lixo. Encheu a rua de gente e todas as atenções se voltaram para o acidente.
Josué correu para o meio dos curiosos que cercavam o cachorro.
Dona Belmira foi para sua casa resmungando que tinha comido cravo-da-índia com coroa e tudo.
Josué procurou um psicanalista e faz análise todas as quartas-feiras. 
O cachorro não morreu. É politicamente incorreto matar animais e esnobar velhos em literatura.

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