A conta dos cuidados com crianças não fecha
Reza a lenda do século 21 que mães devem ficar com seus bebês 24 por 7. A onipresença é justificada pela necessidade de estimulá-los —visando futuros gênios— , para que eles se sintam amados —o pai não é considerado relevante o suficiente— , para que elas os amamentem —querendo ou não— , para que não pensem que elas se arrependeram de tê-lo —nem um pouquinho.
Não é à toa que as mulheres têm se sentido oprimidas ao lado de seus bebês, fugindo deles a cada chance. Com o fim da licença-maternidade cria-se a demanda insólita de estar em dois lugares ao mesmo tempo. Lembremos que a volta ao trabalho ocorre dois meses antes do tempo recomendado pela OMS para o fim do aleitamento materno exclusivo. Creche integral, parentes, largar o trabalho ou contratar uma babá têm sido as saídas para o impasse que se coloca, mas não resolvem a fantasia de clone materno.
A creche, quando existe, depende da adaptação imunológica do bebê ao contato com outras crianças. Contar com parentes depende da sorte de que eles existam e de que não tenham mais o que fazer. À primeira vista pode parecer fácil, mas os custos afetivos por vezes são enormes.
E aí chegamos na famigerada babá considerada um dos marcos do sistema de desigualdades sociais, da exploração e da terceirização da maternidade. Costumam vestir-se de branco em alusão à enfermagem, à higiene e para que fique claro que não são parte da família. Incrível esperar que se cuide de uma criança usando roupas claras.
Para trabalhar, essas funcionárias, quando têm filhos, também têm que assumir uma das quatro soluções acima, recapitulando: creche/escola integral, parentes, babás ou desistir de trabalhar. Muitas pagam babás para olharem seus filhos.
O trabalho doméstico é intrinsecamente aviltante? Sim e não. Havendo a rigorosa observação da PEC do trabalho doméstico, as condições laborais dessas funcionárias se equiparam aos dos outros profissionais e não há porque considerá-las mais exploradas do que já são os demais trabalhadores. Por outro lado, o tratamento dado a essas mulheres costuma vir carregado de desprezo e de abusos. Os limites profissionais estão borrados pela proximidade e os desrespeitos são recorrentes.
Existindo opção melhor, elas não escolhem compartilhar a intimidade de outra família e criar laços próximos demais, tampouco homens preferem recolher o lixo da cidade. Mas é um trabalho digno como os outros, e deve ser tratado com respeito que merece e as leis que o protegem.
Fora os exageros nefastos, a opção pelo serviço da babá, muitas vezes, é a única forma de cuidar dos filhos e continuar tendo uma vida.
Mas há outras questões. Por que só as mulheres costumam se sentir culpadas de deixar os filhos com as babás? Por que só temos babás mulheres? Porque filhos ainda são considerados assunto exclusivo das mulheres sob a fantasia de que gravidez, parto e amamentação duram para sempre.
Poderíamos inverter a lógica e afirmar que depois de nove meses carregando o bebê, caberia aos outros entrarem no jogo e assumirem os cuidados intensivos com ele. Que tal os pais, por exemplo?
Filhos são condição para manutenção da sociedade e, enquanto não pensarmos nos cuidados de bebês e crianças de forma coletiva, mulheres deixarão seus filhos para cuidar dos filhos de outras mulheres e assim sucessivamente.
Gosto de imaginar as consequências catastróficas de uma greve reprodutiva feminina, mas prefiro sonhar com o fim dos mitos sobre a maternidade.
Vera Iaconelli
Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidade”. É doutora em psicologia pela USP.
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