Será que alguém está disposto a viver sem ser dominado ou enganado?
No sábado passado assisti à estreia de "Os 3 Mundos", de Fábio Moon e Gabriel Bá (grandes autores de histórias em quadrinhos —comece por "Daytripper").
A peça é fruto do encontro deles com uma atriz e escritora, Paula Picarelli, que 1) pratica kung fu, 2) contou sua longa experiência de "servidão voluntária" nas mãos de uma seita religiosa (no livro "Seita", da editora Planeta).
O resultado é um espetáculo extraordinário, em que os atores se movimentam e lutam num cenário que é projetado no palco e dá ao conjunto a aparência fascinante de um sonho, ou melhor, de um pesadelo concebido por um desenhista de videogame.
Não perca: a peça está em cartaz até 9 de dezembro, no Teatro do Sesi, na avenida Paulista, em São Paulo, de quinta a domingo, e a entrada é gratuita (apenas é preciso reservar os ingressos antes).
Enfim, por tudo o que eu podia imaginar de antemão sobre a peça, decidi levar comigo meu enteado (9 anos), e lá fomos nós. Na entrada, soubemos que a obra era desaconselhada para menores de 14 anos. Apostando que a recomendação fosse uma bobagem, minha companheira exerceu seu direito e declarou que só os pais têm a autoridade moral para decidir o que seu filho vê ou não vê.
Aplaudi. Mas a coisa não acabou aí. Para essas situações, o Sesi inventou um formulário que deve ser preenchido pelo adulto responsável e que é parecido com as altas hospitalares a pedido, assinadas pela família contra o parecer médico —elas dizem mais ou menos assim: a gente não pode impedir que o paciente saia do hospital, mas, pense bem, se ele morrer, a culpa será sua.
Nesse mesmo estilo, o formulário do teatro manda os adultos assinarem que eles serão responsáveis pelos efeitos (para sempre traumáticos) do conteúdo da obra sobre as ignaras e inocentes almas infantis.
Consequência disso, entrei no teatro esperando excessos de violência e sangue, palavrões, nudez obscena e sexo bizarro. Estava pronto para tapar olhos e ouvidos de meu bem-humorado enteado se a necessidade se apresentasse.
Pois é, aviso aos adultos: podem levar seus rebentos, eles vão amar e sairão da peça com aquelas perguntas inteligentes que vocês gostariam que eles fizessem o tempo todo. Resta a questão: por que a proibição? Em outros termos: quem não gosta que as crianças se (e nos) coloquem perguntas inteligentes?
Mas vamos ver especificamente de quais perguntas se trata. A peça conta a história de um mundo destruído, em que alguns perdidos, receosos do que estaria "lá fora", sobrevivem debaixo do calcanhar de um déspota violento (que de vez em quando sacrifica um deles).
No mesmo mundo, outros perdidos, sedentos de um sentido, sobrevivem nos subterrâneos, alimentando uma fé religiosa compartilhada (seu líder, aliás, suprime os que duvidam).
Sem spoiler: talvez a gente queira ser dominado —seja pela violência, seja pelas nossas próprias crenças. Se Hitler, em 1940, declarasse pelo rádio "desculpem, me enganei, não é nada disso, o nazismo é uma baboseira", será que seus súditos festejariam? Será que se sentiriam "liberados"? E se algum papa, imã ou coisa que valha anunciasse que os dogmas religiosos são contos para boi dormir, será que os crentes festejariam? Será que se sentiriam "liberados"?
Em outras palavras: será que alguém está disposto a viver sem ser dominado e/ou enganado?
Eu gostei de que meu enteado pudesse se colocar essa pergunta. E, na verdade, penso que deveriam ser desaconselhadas para as crianças as situações inversas à peça, ou seja, as situações em que o medo do estrangeiro e a vontade de dar sentido ao mundo nos tornam presas fáceis de qualquer tipo de domínio.
Aquele formulário em que os adultos reconhecem sua responsabilidade pelas eventuais consequências do espetáculo para a alma infantil não deveria ser pedido na entrada do teatro, mas na entrada de cultos, igrejas, aulas de religião ou comícios.
Seja como for, na conversa, depois da peça, acabei amenizando a pílula. Afinal, observei, essa disposição extrema para a servidão voluntária se explicava pela situação; a peça acontece numa situação muito diferente da nossa, depois de um apocalipse (talvez uma terceira guerra mundial): como manter ou reinventar valores, como cultivar nossa própria liberdade moral quando a cultura toda se perdeu nos escombros de um mundo em ruína?
Isso era sábado. Domingo queimou o Museu Nacional do Rio.
Contardo Calligaris
Psicanalista, autor de “Hello, Brasil!” e criador da série PSI (HBO).
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