Lutas sociais nunca são feitas em nome apenas daquilo que afirmam de imediato
Um dos piores erros em política é acreditar que o tempo histórico é uma linha reta.
Quem entende o tempo como linha reta acredita que fatos ocorridos ficam no passado, que as lutas de outrora dizem respeito a configurações de outrora e que cada momento exige uma análise radicalmente específica, como se estivéssemos a lidar sempre com o que não é fruto de retornos e repetições.
Isso pode se passar por precisão analítica, mas é apenas pobreza intelectual.
O tempo histórico é uma pulsação contínua de contrações, sua espessura é própria de uma matéria de múltiplas camadas na qual cada uma dessas camadas se afunda na outra. Por isso as lutas sociais nunca são feitas em nome apenas daquilo que elas imediatamente afirmam. A todo momento, elas são atravessadas por palavras e frases que parecem vir de outros tempos; elas parecem encarnar personagens e gestos que nos remetem a outras cenas.
A razão não é estranha, pois toda verdadeira luta política é um campo de batalha sobredeterminado, no qual lutam os vivos e os mortos, os presentes e os espectros. Os mortos se apoiam nas lutas dos vivos para continuarem suas batalhas --eles dirigem suas mãos. Quem não entende isso nunca entenderá o que é uma luta política, sua complexidade, assim como a força de seus atores.
Seria bom lembrar disso em um país como o Brasil. O Brasil acredita poder resolver suas lutas esquecendo-as, extorquindo reconciliações, pregando retornos a épocas idílicas de paz que nunca existiram. Por isso, ele é continuamente assombrado pelas piores regressões, pelas violências mais explícitas.
Uma parte —apenas uma parte— das eleições atuais é a decisão a respeito dos novos ocupantes do poder. Mas essa decisão está contagiada pela luta paralisada e calada durante mais de 30 anos contra a ditadura militar que nunca passou por completo. Seu fascismo ordinário esteve sempre prestes a explodir no interior da sociedade brasileira.
Essa luta, por sua vez, já é a repetição de outras lutas e a recusa de outros silêncios. Por isso, ela não acabará agora, seu destino não é o "convencimento" de uma das partes. Pela primeira vez desde o fim da ditadura, o Brasil é obrigado a encarar o antagonismo profundo que o cinde, o irreconciliável que o habita. O melhor a fazer, desta vez, é dizer esse irreconciliável da forma mais explícita possível.
Quando vários levantam suas vozes para continuar uma aparentemente delirante "luta contra os comunistas" —em uma época em que não há mais comunistas em lugar algum—, há de se saber reconhecer a verdade desse delírio. "Nós deveríamos ter matado todos", dizem agora aqueles que gostariam de ter se livrado dos "comunistas" há décadas.
É verdade, vocês já atiraram em nós outras vezes, torturaram outras tantas, vocês continuarão atirando e torturando, de uma forma ou outra. Nós já nos encontramos antes. Esta não foi a primeira vez; não será a última.
Sim, os pronomes são esses: "vocês" e "nós". Há horas em que eles são inevitáveis e necessários. Toda sociedade é a expressão de uma colisão. E a pior maneira de evitar uma colisão é fingir que ela não ocorre.
Melhor seria assumi-la como destino contínuo dos processos históricos, sentir sua espessura, ouvir as multiplicidades de suas vozes, estar preparado para ela. Elas serão necessárias até que um pacto mínimo, que não existe no Brasil, seja extraído do fogo.
Nós entramos em rota de colisão. Se me permitem, depois da eleição de 2014 afirmei que o país estava dividido e não haveria nada que poderia apagar tal divisão. Alguns disseram que fui irresponsável —julgaram que seria possível tentar produzir, mais uma vez, acordos e conciliações impossíveis até então.
A história mostrou que eles estavam errados. Pois essas lutas não são nem de hoje nem de ontem. Elas só começarão a cessar quando deixarem de ser apagadas.
Vladimir Safatle
Professor de filosofia da USP, autor de “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário