Almanaqueiras: ou não queiras.

Almanaqueiras: ou não queiras.

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

E você vê o sujeito morfinado recontar, na UTI, o milagre que fez de um misógino homofóbico racista do baixo clero um mito da classe média escolarizada que tem pânico da Venezuela.

Ao som de Ary Barroso, tento dizer para meu filho que aqui é bom, mas não consigo

Fernanda Torres 



Você desce a avenida das Américas com o seu filho de dez anos no carona. A lua cheia desponta na pedra da Gávea, o sol laranja no retrovisor. Você ignora os prédios feios, o horizonte de favelas, passa a mão no cabelo dele e diz: "Bonito, né?"

E a rádio toca "Aquarela do Brasil", justo ali, naquela hora, o moleque entoa os versos que aprendeu na escola, "Brasil... meu Brasil brasileiro", e o peito aperta de horror das coisas.

Seus amigos deixaram a cidade, se mandaram para o exterior. Você cogita fazer o mesmo, mas sua pátria é sua língua. E você pensa nos tiroteios, no Cabral, no Crivella e no Garotinho —e tem ganas de fechar as malas e correr para o aeroporto.

E você aguarda a próxima pesquisa e escuta a ladainha do dois pra lá, dois pra cá das margens de incerteza. E você estuda as curvas e acompanha análises, com um misto de angústia, raiva e desespero.

E você lê que o general tacanho xingou os africanos e os sul-americanos de mulambada, depois de comparar o Brasil com um cavalo saltador. E se dá conta de que já ouviu a analogia equestre na adolescência, na voz de outro milico truculento, o do prendo e arrebento, que preferia o cheiro de égua ao da população.

E você constata que a autoestima do Messias deu ao monstro um senso de humor que ele não tinha. Um senso de humor que o tornou palatável, apesar da incitação ao ódio, da menina com a mãozinha em riste, imitando um três-oitão, e da adoração confessa pelo torturador que levou duas crianças para ver a mãe ensanguentada levar choque nos porões do Dops.

E você assiste à facada quase ao vivo, e se controla para não desejar a morte do pobre do ser humano. E você vê o sujeito morfinado recontar, na UTI, o milagre que fez de um misógino homofóbico racista do baixo clero um mito da classe média escolarizada que tem pânico da Venezuela. E você pensa que se danou, porque, depois do atentado, vai ser difícil roubar-lhe a aura de Lázaro ressuscitado.

E você lê Adorno e descobre que a razão esclarecida é a mãe de Juliette, a assassina ninfomaníaca do Marquês. Você lê isso e pensa que a soberba fria do liquida tudo do Paulo Guedes tem mesmo algo de sádico, e se arrepia com a crença cega que o economista ostenta no mega-ultraliberalismo.

E você conclui que o Brasil SA se associou ao Brasil SS; e que na impossibilidade de demitir os miseráveis, melhor fuzilar em massa, com 30 tiros no peito, como sugeriu o candidato.

E você, enquanto ouve "Aquarela do Brasil" na porra do carro blindado que já te livrou de levar um tiro à queima-roupa, você olha para o seu filho e lamenta o fracasso da terceira via. E pensa que, se é para ser Haddad, ele é o que de melhor Lula tem a oferecer de poste.

E você lê a The Economist, o Guardian e o Le Monde e reza para que o mercado entenda que o triunvirato do ungido da pena de morte com o posto Ipiranga do day trade e o general maçom de cabelo graúna é um fim de linha que não tem tamanho.

E você ama Ary Barroso, e canta com seu filho o "Brasil do meu amor, terra de nosso Senhor", e tenta dizer que aqui é bom, mas não consegue. E você olha a lua cheia, iluminando os barracos da Rocinha, e tem vontade de gritar.

Fernanda Torres
Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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