Um país à flor da pele
O sentimento que se dissemina é o mesmo que envenenava a sociedade brasileira no período imediatamente anterior ao golpe de 64.
SYLVIA DEBOSSAN MORETZSOHN
O espetáculo decorria normalmente quando o ator e co-diretor Claudio Botelho interveio com um improviso em que ironizava a hipótese de prisão do ex-Presidente Lula e chamava a Presidente Dilma Rousseff de ladra. A plateia logo reagiu, inicialmente com gritos e vaias, até finalmente entoar o coro “Não vai ter golpe!”, típico das manifestações contra o impeachment. A peça Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos, que fez carreira no Rio e em São Paulo e passou por Lisboa e Porto na primeira quinzena deste mês, estava em cartaz em Belo Horizonte apenas neste fim de semana. Foi interrompida na estreia, no sábado (19/3), e não voltaria a ser encenada.
Na coxia, o ator-diretor estava transtornado. Alguém do elenco gravou e depois vazou a áspera discussão dele com uma atriz: “(...) são neofacistas, são escrotos, são petistas, são o que há de pior no Brasil, (...) essa gente que chega e peita um ator que está em cena, um ator que está em cena é um rei, não pode ser peitado, não pode ser peitado por um negro, por um filho da puta que está na plateia!” Com a repercussão negativa e a acusação de racismo – crime inafiançável no Brasil –, ele depois tentou se justificar dizendo que não disse “negro”, mas “nego”, uma expressão coloquial e carinhosa, que jamais seria empregada numa discussão raivosa como aquela.
No meio de seu destempero, Botelho chegou a comparar a situação à agressão sofrida pelos atores que encenavam Roda Viva, também de Chico Buarque, durante a ditadura: “em 67 [sic] os militares pararam Roda Viva, hoje os petistas pararam Roda Viva, você entende? (...) isso aqui são bandidos, são pessoas armadas, são pessoas que tiraram Marília [Pêra] de cena!”. Na verdade, o episódio ocorreu em julho de 1968, quando a repressão caminhava para o auge e a perseguição à esquerda se radicalizava. Roda Viva entrou para a história como um símbolo de resistência depois que um grupo de mais de cem pessoas do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) invadiu o teatro, espancou os artistas e depredou o cenário. Talvez não seja preciso dizer muito sobre o despropósito da comparação entre essa violência e o protesto pacífico da plateia.
O desastrado improviso não poderia ter sido mais inoportuno. Jamais seria bem aceito por uma plateia que foi ao teatro ver uma peça baseada na obra de Chico Buarque, cuja posição ideológica é conhecida por todos. O público haveria de ser formado por quem o admira, não por quem o contesta, como os rapazes que, em dezembro do ano passado, o hostilizaram no Leblon, bairro nobre do Rio de Janeiro, quando ele saía de um restaurante com um grupo de amigos. Ao saber do incidente em Belo Horizonte, Chico retirou a autorização para o diretor utilizar suas obras daqui por diante.
Para o jornalista Bernardo Mello Franco, “o chilique de Botelho expõe uma face da nova direita verde-amarela que muita gente (e boa parte da mídia) prefere fingir que não vê”, e que é preocupante:
“Há um clima de raiva e intolerância no ar – que hoje se volta contra o PT, mas poderá atingir outras forças políticas. Basta ver o que ocorreu no dia 13, quando os tucanos Aécio Neves e Geraldo Alckmin foram hostilizados e enxotados da Avenida Paulista”.
Essa história circulou amplamente nas mídias sociais e simboliza bem o estado de tensão que marca atualmente a vida cotidiana no Brasil. Como escreveu o jornalista Luiz Caversan em artigo deste domingo (20/3) na Folha de S.Paulo, reproduzindo o comentário de um amigo, “as pessoas estão ou decepcionadas ou tristes ou com raiva ou alternam estes sentimentos de uma hora para a outra, às vezes querendo sumir ou chorar, às vezes querendo bater, querendo quebrar, querendo gritar; todo mundo fala, todo mundo berra, mas ninguém ouve”.
De fato, o clima de polarização política é contrário a qualquer hipótese de diálogo. Mas é preciso notar que esse ambiente foi cuidadosamente cultivado desde a campanha eleitoral de 2014. O ódio ao PT, que já demarcava a divisão de classes com a rejeição aos programas de assistência e inclusão social, radicalizou-se com a apertada vitória de Dilma Rousseff. A oposição, que inicialmente levantou a suspeita de fraude eleitoral, jogou pesado na tese do impeachment, buscando a cada momento um argumento diferente para justificá-lo. A comunicação social, agindo praticamente em bloco, como um partido político – e isto não é exagero, porque o apelo a que a imprensa cumprisse o papel da oposição foi feito explicitamente já em 2010, pela então presidente da Associação Nacional de Jornais, Judith Brito –, estimulou a reação da classe média ressentida. Amplamente divulgado pela TV, o espetáculo de pessoas nas suas janelas e varandas batendo panelas ou tocando buzinas sempre que a Presidente ou seu partido apareciam na telinha para um pronunciamento é talvez o melhor exemplo desse estado de espírito refratário ao diálogo.
O sentimento que se dissemina é o mesmo que envenenava a sociedade brasileira no período imediatamente anterior ao golpe de 64 e opunha lacerdistas e brizolistas. O ódio que hoje recrudesce é o ódio de classe: a melhoria da situação dos mais pobres nos anos anteriores à atual crise, a possibilidade que passaram a ter de desfrutar de espaços de consumo e lazer antes exclusivos da classe média, o programa de cotas que os conduziu ao ensino superior, a legislação que equiparou os direitos das domésticas – uma herança escravocrata tão estranha aos europeus – aos dos demais trabalhadores, tudo isso é visto com desprezo e raiva por essa parcela da população que, como ironizaram Dias Gomes e Ferreira Gullar numa peça de teatro dos anos 60 – Dr. Getúlio, sua vida, sua glória –, “sonha ter em virtudes o que lhe falta em dinheiro”.
A tentativa de associar o combate ao impeachment à defesa do governo, sempre reiterada nos meios de comunicação em sua suprema simplificação da realidade, tem o indisfarçável sentido de reproduzir a dicotomia rasa que identifica como petista – portanto, como aliado de corruptos, tendo em vista o alvo principal da Operação Lava Jato – todo aquele que exige o respeito às regras elementares da precária democracia vigente no Brasil. Pelo contrário, muitos dos que se manifestam sistematicamente nas redes sociais e que foram às ruas na última sexta-feira se mobilizaram para barrar o golpe que percebem estar em curso, sobretudo depois das mais recentes ações do juiz Sérgio Moro, que referi em artigo anterior. E porque querem combater a intolerância e o ódio típicos de um comportamento fascista antes circunscrito a gays, transexuais e, em alguns casos, negros e praticantes de religiões de origem africana: hoje, sair às ruas com alguma peça de roupa ou acessório na cor vermelha é se expor ao risco de uma intimidação, um xingamento ou até uma agressão física. Por sinal, exatamente o contrário do que o ator-diretor Claudio Botelho acusou em seu destampatório contra a plateia supostamente “petista” que protestou contra seu improviso.
Professora de jornalismo na Universidade Federal Fluminense
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