Por uma concertação
Não consigo entender como se pode discriminar, um do outro, brasileiros que se manifestam, só porque um foi convocado pelo seu sindicato e o outro vai à passeata com a babá
Cacá Diegues é cineasta
Estou fora do Brasil por algumas semanas, terminando a mixagem de som de meu filme “O grande circo místico”. A última vez em que estive em Paris por tanto tempo, foi quando vim lançar o filme dos cineastas moradores de favela, “5XFavela, agora por nós mesmos”, em 2010. Aliás, é sempre o cinema que me faz viajar tanto; se eu não fosse cineasta, não teria conhecido metade do mundo que acabei conhecendo.
Há seis anos, o Brasil era o país da hora por aqui, a estrela do Brics, a nação emergente de maior destaque. Todos os jornais diziam que Lula, segundo Barack Obama, era the man; e Dilma Roussef, recém-eleita como grande administradora pública, estava na capa das revistas importantes da Europa. Dá um aperto no coração quando comparamos com agora.
Nesse período de tempo, nenhum outro país, rico ou pobre, em qualquer parte do mundo, passou por uma tão grande queda como a nossa, constatável pela miséria do PIB, pela volta da inflação, pela perda de poder aquisitivo da população (sobretudo a de baixa renda), pelo desemprego dramático, pela corrupção e o caos que agora, em todos os jornais e na televisão, substituem, quando nos dão espaço, as boas notícias de 2010. Até no futebol ninguém mais respeita a gente!
Essa semana, depois da nomeação de Lula como ministro de Dilma e do caos que se sucedeu a ela, o principal jornal francês de esquerda, “Libération”, publicou uma simples nota sem destaque, na coluna “Notícias em três linhas”, em que diz: “Golpe duplo para Lula no Brasil. O ex-presidente se tornou chefe de gabinete (Casa Civil) do governo, ele espera dissipar a ameaça de destituição de Dilma Rousseff e evitar sua própria inculpação por corrupção”.
“Le Monde”, o tradicional jornal de centro-esquerda, publicou, na primeira página, uma foto das manifestações em frente ao Palácio do Planalto (dizendo erroneamente tratar-se da residência presidencial) e, na página três, um texto substancial sob o título: “Lula entra no governo, o Brasil pega fogo”. Nesse texto, se diz que o Brasil está vivendo “um coma político e econômico”, e que a posse de Lula na Casa Civil, se bem-sucedida, pode ser comparada à de Charles de Gaulle na França. Ou seja, o advento do semi-presidencialismo ou semiparlamentarismo que alguns políticos brasileiros tanto pregam.
Como nunca fui militante e prefiro pensar por minha própria cabeça, não consigo ver que lado ou partido tem mais razão que o outro. Antigamente, era mais fácil escolher um lado. Em todas as crises que vivi, do suicídio de Getúlio Vargas ao impeachment de Collor, passando pela de Jânio, da ditadura militar ou da moratória de Sarney, sabíamos muito bem qual era o lado certo.
Hoje, os dois (ou mais!) lados vivem num mundo de pensamento mágico, inventando coisas que justifiquem sua irracionalidade e sua insensatez, incapazes de reconhecer até que ponto o outro pode ter razão. É incrível como os argumentos são construídos em torno do “sempre foi assim” ou “se eles fazem, posso fazer também”. Não ocorre a ninguém que o crime não se justifica, só porque os outros já o praticaram antes de nós.
Não consigo entender como homens de esquerda criticam com raiva o combate à corrupção no país e em nossas vidas; como não consigo entender como liberais se deixam enrolar por defensores da ditadura e da explícita falta de liberdade. Não consigo entender como se pode ser favorável a essa justiça indiscriminada de escutas, esse oximoro político; como não consigo entender por que não podemos ser favoráveis à prisão de criminosos, sejam eles quem forem. Não consigo entender como se pode discriminar, um do outro, brasileiros que se manifestam, só porque um foi convocado pelo seu sindicato e o outro vai à passeata com a babá.
Lula será sempre um político importante, capaz de voltar a fazer pelo país o que já fez durante seus dois mandatos como presidente. Mas é claro que ele já deixou de ser o mito que foi, admirado e respeitado mesmo pelos que não se alinhavam com ele. Sua capacidade de agitação volta a se restringir a seus parceiros do PT e a alguns movimentos sociais, o que já são muitos brasileiros.
Assim como Lula não tem o direito de desqualificar os cidadãos que foram às ruas protestar contra a presidente, assim também é pouco democrático pedir o impeachment de quem foi eleita pelo voto popular majoritário, a provocar assim uma divisão radical entre brasileiros, capaz de nos levar à conflagração que nos fará retroceder dramaticamente nas conquistas dos últimos anos.
Por justiça e para evitar o pior, é de uma concertação que estamos precisando. Uma concertação que não elimine as diferentes agendas de todos os lados e partidos, mas que faça com que elas sobrevivam em disputa democrática. Uma concertação que começa com o direito de falar e a obrigação de ouvir.
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