Almanaqueiras: ou não queiras.

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quinta-feira, 24 de março de 2016

o nosso lado está esculpido em Carrara. e o seu?

De que lado você está? 

Contardo Calligaris


1) Conversar se tornou difícil. Não porque podemos ter visões e convicções diferentes –ao contrário, as diferenças tornariam as discussões mais proveitosas.

O que faz com que conversar tenha se tornado difícil é que, em geral, nosso interlocutor só quer saber de que lado nós estamos?



As pessoas divergem, poderiam aproveitar sua discordância; mas a maioria só quer "descobrir", entender, inventar ou decidir (apressadamente) de que lado está o outro.
Em outras palavras, o intento do debate não é articular a complexidade dos fatos e das escolhas possíveis. Trata-se apenas de saber se você é "um dos nossos" ou não. Obviamente, quem não for "um dos nossos" é contra a gente.

Não tente dizer que você não está de lado algum. Ou melhor, tente, e isso será a prova esperada de que você é "contra a gente".

2) Nos primeiros anos do ginásio (começo dos anos 1960), a questão era: você é Sartre ou é Camus?

Os que eram Camus gostavam de discutir, questionar, porque, fundamentalmente, achavam que cada indivíduo é cheio de conflitos, de contradições, de desejos não resolvidos e de perguntas sem resposta.

Os que eram Sartre só queriam saber se você estava do lado deles e da classe operária ou não.

Eu era Camus. Talvez devido ao S., que era muito Camus e eu amava de longe. Mas não só por isso.

A necessidade de estar de um dos lados, "sem frescuras" (como alguém me disse nestes dias), é uma péssima conselheira. Só para lembrar: quando André Gide voltou da União Soviética, em 1936, dizendo que aquilo era um horror, poucos, na esquerda, ficaram a fim de questionar a experiência stalinista; ao contrário, o que ele escrevia "provava" que Gide não devia ser "um dos nossos" –embora, na época, ele fosse comunista.

E quando Sartre fez sua viagem à União Soviética, em 1954, ele achou tudo lindo e se sentiu inteiramente "um dos nossos", sem as "frescuras" de Camus, que questionava o stalinismo desde 1946.

Moral da história? Quem se preocupa com o lado em que cada um está geralmente deixa de enxergar, simplesmente, a realidade.

3) A pergunta "de que lado você está?" é confortável porque permite evitar as eventuais incertezas diante da complexidade do mundo.

No lugar do tormento de escolhas e entendimentos sempre imperfeitos, a pergunta "de que lado você está?" nos introduz ao "pensamento coletivo", que é apenas um jeito de cimentar o grupo "da gente".

O pensamento coletivo tem a única missão de fazer existir o grupo. Assim, no melhor dos casos, ele se apresenta como série de palavras de ordem compartilhadas. No pior dos casos, é pura retórica da cumplicidade, que celebra o fato de que "os outros" são inimigos.

Nesse caso, o pensamento coletivo é uma mistura de piadas prontas, uma zoeira de padaria que só alimenta a ideia de que os outros são os "filhos da puta", os "covardes", os "idiotas"... E, claro, uma mulher só pode ser "a nega".

O pensamento coletivo, em outras palavras, não é pensamento algum; é apenas a expressão de uma cumplicidade estúpida, rude –boçal seria a palavra certa, se não fosse politicamente incorreta.

Algumas conversas gravadas pela Lava Jato (entre Rui Falcão e Jaques Wagner, por exemplo) poderiam ilustrar um tratado sobre os efeitos do "pensamento coletivo" em quem se deixa levar a praticá-lo.

4) Falando em gravações, uma observação sobre a famosa conversa entre Lula e a presidente Dilma mandando a ele o termo de posse como ministro. Há controvérsias quanto à legalidade do grampo e à legitimidade de torná-lo público. Li argumentos de juristas que respeito, alguns a favor, outros contra.

Mas a questão jurídica não é decisiva, para mim. Por anarquismo de temperamento, considero que a sociedade é sempre mais importante que o Estado e seus governos. Na mesma linha, tento nunca me esquecer de que, em última instância, a autoridade de qualquer governo ou Estado sempre provém do povo.

Por isso, não aceito facilmente que um governo ou um Estado esconda suas ações do povo, que é a única fonte da autoridade deles.

Edward Snowden, ao tornar públicos documentos secretos, pode ter traído o governo dos EUA, mas será que traiu o povo americano? Eu não me senti traído por ele.

Semana que vem tento continuar. E, por favor, não decida já de que lado estou.

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