Manera aí, presidente
Cacá Diegues - O Globo
Lula não tem o direito de fazer isso com sua imagem mítica, símbolo da luta por um país menos injusto e desigual, dominado por oligarcas vorazes e sem princípios
Simpatizantes do governo têm usado os malfeitos do passado para justificar os malfeitos do presente. Fernando Henrique comprou a reeleição, Fernando Collor enriqueceu com a ajuda do PC, a filha do Sarney foi apanhada em flagrante, etcetera e tal. Parecem nos dizer que a corrupção é uma característica de nossa política, um costume nacional arraigado na alma de nossos homens públicos. Não há nada a fazer, o Brasil é assim mesmo, deixa pra lá e vamos em frente.
Já disse aqui que sou contra o impeachment da presidente Dilma por julgá-lo injusto, improcedente e inconsequente. E fico feliz sempre que a vejo proceder corretamente, mesmo sendo vítima de massacrante agonia. Durante todo esse processo, não vimos a presidente cometer um só gesto ou dizer uma só palavra que desconsiderasse ou ameaçasse nossa democracia.
Não sei se gosto do ministro Joaquim Levy. Às vezes, penso que o ajuste fiscal aumenta a fome do povo; às vezes, lembro o dramático fracasso da Grécia na luta contra o ajuste lá deles. Mas Dilma reagiu bem às arrogantes e desastradas declarações do PT contra o ministro da Fazenda. Se sua política não representa mais o partido que a elegeu, essa não é a reação mais correta dos interessados.
Acima disso tudo, se encontra a figura do ex-presidente Lula. Vindo da arcaica miséria nordestina para a moderna indústria paulista, da luta sindical à resistência democrática à ditadura, Lula tornou-se um avatar do povo brasileiro. Ostensivamente pobre, descabelado e barbudo, mal vestido como um penitente, Lula ganhou a confiança de quem o sentia um igual. Além disso, tornou-se o exemplo maior de uma mobilidade social que este país, dominado secularmente pelas mesmas oligarquias autoritárias e devastadoras de sempre, nunca conhecera.
Uma das maiores emoções cívicas de minha vida se deu diante da televisão, vendo Lula tomar posse no início do primeiro mandato. Me senti diante de um líder nacional bem-humorado, sereno e generoso, acima da mesquinharia e da esperteza da política vulgar, com um projeto para seu povo. Ele podia ser o nosso Gandhi ou o nosso Mandela, o amor de todos. Um herói popular como Getúlio Vargas, sem o tenebroso passado do Estado Novo. Um guia dos brasileiros que buscavam uma esperança, o espelho social e moral dessa esperança.
Minha primeira decepção com Lula se deu quando o vi na televisão a declarar que tinha preguiça de ler livros, que dormia quando tentava lê-los, subestimando a importância da educação e da cultura de um povo que precisa saber quem é. Logo o vimos repaginar-se de terno e gravata, menosprezando com ironia, ainda na televisão, o macacão de operário que usara durante tantos anos. Como cidadão livre, ele tinha todo o direito de gentrificar-se, ficar rico servindo às empreteiras em troca de palestras milionárias. Mas não era isso que seus eleitores (ou não eleitores) esperavam.
Essa semana, no Piauí, o ex-presidente disse que o PT não pode permitir que ladrões chamem seus militantes de ladrões. Ou seja, ladrão não pode chamar ladrão de ladrão. Um arranjo esperto pois, como quase todo mundo é ladrão, nunca saberemos quem é ladrão. Lula não tem o direito de fazer isso com sua imagem mítica, símbolo da luta por um país menos injusto e desigual, dominado por oligarcas vorazes e sem princípios. Ele talvez devesse ouvir José Mujica, o ex-presidente uruguaio: “Quem quiser ganhar dinheiro, que o faça, não é crime; mas longe da política”.
O que Lula quer ser? Mais um chefe de clã político ou um indiscutível mito popular a serviço do país? Dos primeiros, não precisamos de mais um, temos muitos. Ele foi um presidente bem-sucedido, um líder que deu continuidade inteligente ao que fizeram Itamar e FH, mantendo o Brasil na rota da consolidação da democracia, do controle da inflação, crescimento econômico e distribuição de renda. Lula é uma luz para o povo brasileiro, muito superior à mediocridade dos homens públicos convencionais, não tem o direito de desistir disso em nome de caprichos, idiossincrasias políticas e bem-estar pessoal. Manera um pouco, presidente, manera aí.
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