Almanaqueiras: ou não queiras.

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terça-feira, 20 de janeiro de 2015

”Que os anjos construam hospitais para as almas sofredoras. Enquanto não o fazem, construirei para elas um palácio de sonhos”.

AS DESPEDIDAS


Eduardo Pereira – dudaleu1@gmail.com





Há duas semanas atrás estava com Hermi Felinto em João Pessoa, e, sabemos muito bem, quando dois cajazeirenses se encontram as memórias sobre o torrão natal afloram, não importando que tipo de lembranças. Hermi reside a muitos anos em São Paulo, é doutor em química e leciona na USP. Atuou no teatro de Cajazeiras na década de setenta juntamente com Ubiratan e Beto Montenegro e mais um time de jovens atores que deixaram suas marcas na história cênica na terra do Padre Rolim.

Sentados na mesa de um bar no Bessa, olhando pra aquele marzão deslumbrante e lavando a alma com cerva, não esquecemos o lado consternado daquela Cajazeiras quando a seca dos anos setenta ocasionou o êxodo de muitos irmãos conterrâneos. Hermi disse que lembra perfeitamente a cena comum de homens viajando cotidianamente pra São Paulo em busca de sua sobrevivência e de sua família. Afligia-lhe as pessoas chegando na Rodoviária Antonio Ferreira com suas malas simples, de madeira, recoberta por papel colorido, o funcionário da Viação Planalto acomodando as malas no bagageiro do ônibus como se estivesse encurtando mais ainda a despedida dos passageiros.

Abraços pesarosos, crianças pegadas nos cóis das saias das mães, chorando, com narizes escorrendo catarro porque a mãe estava lagrimando na despedida com o companheiro entrando no ônibus, depois da conferência na porta, agora já sentado na cadeira e acenando pela janela, num balançar de mãos como se fosse a despedida de um até breve, mas sabia-se precisamente que não seria um até breve.

Outra lembrança pesarosa que afogamos na mesa do bar, como se fôssemos os responsáveis pelas mazelas daquela Cajazeiras nada ficcional, eram os enterros de anjinhos. Quem não lembra daqueles caixõezinhos azuis em que até um homem de mão espalmada o conduziria como se fosse uma bandeja de garçom com copos. Praticamente só os familiares desfilavam pelas ruas de paralelepípedos quentes conduzindo aquela alma de Deus que se destacou apenas pelos números estatísticos da fome de então. Não havia choro porque se sabia que aquela criaturinha não teve tempo de cometer pecados e era chamada por Deus. “Deus quis assim”, no julgar dos comuns.

Quando passávamos na Praça dos Carros sempre víamos na funerária aqueles caixões grandes de defunto contrastando com os caixõezinhos, como se fosse uma disputa desproporcional do juízo final. O certo, pensava em criança, era usar só os grandes.

Os anjinhos poderiam muito bem ser “anjos das pernas tortas’. Mas aí eu já estava não sei em que quantidade de copos sorvidos de cerva, Hermi bebia cerva sem álcool, o mar se agitava, nós estávamos de férias, e para arrematar a saideira lembrei de uma frase de Honoré de Balzac: ”Que os anjos construam hospitais para as almas sofredoras. Enquanto não o fazem, construirei para elas um palácio de sonhos”. Acredito que a frase é assim, ou mais ou menos assim.

Apesar dessas lembranças saímos dali com a consciência leve, pois no encontro entre dois ou mais cajazeirenses haverá sempre o prazer da memória, não importa seu grau, se áspera ou se galhofeira.  

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