Almanaqueiras: ou não queiras.

Almanaqueiras: ou não queiras.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

"No passado, adorávamos Copa do Mundo. Passamos a detestar."

À flor da pele

(...) Mas antes que me caia na cabeça uma privada jogada pela torcida contrária, conto o que vi na esquina.

Joaquim Ferreira dos Santos - O Globo




A velhinha andava com dificuldade pelo supermercado, cheia de pacotes na mão. Premida pelos desconfortos da idade e também pelas longas filas nos caixas do Zona Sul, ela furou a destinada a pessoas carregando menos de dez produtos. A velhinha carregava muitos mais.

No último posto da fila, um sujeito imenso, que em seguida declarar-se-ia, num português menos escorreito, um segurança de banco, começou a discursar. “É assim que se faz um país de gente esperta e safada.” A esperta safada era a velhinha. Ela, por sua vez, contaminada pela irritação geral que une o país, também não botou o galho dentro.

Disse que safado era ele, que fosse àquele lugar. O resto da fila permaneceu em silêncio, todos esperando a vez de gastar seus ódios particulares esculachando a caixa pelos caros e lentos serviços do supermercado.

Quando a velhinha já estava na calçada, o segurança finalizou sua guerra particular. “Quando estiver sendo assaltada na saída do banco não vem pedir ajuda que eu não vou ajudar”. A velhinha esticou-lhe o dedo, na sinalização definitiva de que, aqui ó, ninguém mais leva desaforo para casa.

Pode parecer pouco diante dos linchamentos da mulher em Guarujá e do Renato Aragão na internet, ambos vítimas de boatarias. Mas, definitivamente, ninguém quer saber de inocentes. Chegou a hora nacional de encontrar os culpados por um país que não decola, e fazer a sua justiça particular. Um sujeito quebrou os dentes da mulher que, no Municipal, ao seu lado, tagarelava ao celular — e foi aplaudido.

Dias atrás, escrevi sobre a Copa como evento capaz de alegrias para quem gosta de futebol. Foi o suficiente para a caixa postal se encher de vitupérios sobre ufanismo suburbano. No passado, adorávamos Copa do Mundo. Passamos a detestar.

Tenho a impressão de que se o espírito do escritor austríaco Stefan Zweig, morto em 1942, baixasse num centro mediúnico da Vila da Penha, seria linchado por ter publicado o livro em que chamava o Brasil de “país do futuro”. Ai de quem assoprar alguma frase positiva na arena brasileira de hoje. Eu, se fosse o fantasma de Augusto Comte, arauto do positivismo, morto em 1857, não reencarnaria por aqui. Seria enrolado na bandeira brasileira e queimado junto com ela. Não tinha nada que inspirar no nosso lábaro estrelado a desfaçatez do “Ordem e progresso”. Onde?
Nem o João se arriscaria a responder.

Nenhum comentário:

Postar um comentário