O último golpe de estado no Brasil completa 50 anos no dia 31 deste mês. Ainda hoje o Brasil sofre as consequências da interrupção do processo democrático, iniciado com a queda de Getúlio Vargas, em 1945, e seu Estado Novo, implantado em 1937 por ele mesmo, com a ajuda do Exército. Na verdade, o 31 de março de 1964 foi o desfecho de uma conspiração de dez anos. Getúlio Vargas foi eleito presidente da República em 3 de outubro de 1950, derrotando o brigadeiro Eduardo Gomes. Segmentos conservadores da sociedade brasileira – partidos políticos, latifundiários, industriais, parte da Igreja, das forças armadas e classes médias urbanas – aliados ao governo dos Estados Unidos não se conformaram com a derrota. Impossível aceitar o retorno ao poder do velho gaúcho que se fez chefe do governo revolucionário de 1930 e, se impôs como ditador sete anos mais tarde.
No tempo de ostracismo, Getúlio aprofundara suas ideias nacionalistas, em meio à “guerra fria”, o mundo dividido em dois polos: capitalismo e socialismo, Oriente e Ocidente, democracia e opressão, enfim, na visão de muitos, o bem e o mal a estimular crenças e atitudes radicais. Posições nacionalistas distanciaram Vargas da área de influência americana. A campanha eleitoral girou em torno da sua volta ao poder, agora pelas urnas, nos braços do povo, no melhor estilo populista latino-americano. Ele voltara em movimento de massas, sustentado por trabalhistas, comunistas, nacionalistas, em aliança com as velhas raposas políticas do PSD, agraciadas com as benesses do poder. A eleição de Vargas prenunciava o golpe. Ora, não sendo possível vencê-lo pelo voto, só havia um meio de destroná-lo: o golpe de força, surrado modelo aplicado na América Latina, desde sempre. Mal Getúlio pôs os pés no Palácio do Catete, a imprensa começa a preparar o ambiente para sua deposição.
No governo, Getúlio foi além das intenções. Criou órgãos públicos de fomento a ações planejadas, como o BNDE e o BNB, fez opção pelo monopólio estatal do petróleo, criando a Petrobras, defendeu os trabalhadores e adotou outras iniciativas populares. Com isso, desagradou muita gente, contribuindo para que se formasse uma grande aliança visando derrubá-lo do poder. Para isso, uniram-se na conspiração partidos políticos, como a UDN, a imprensa, entidades empresariais. As malfeitorias de membros do governo eram exploradas de modo assustador. Personagens como Carlos Lacerda, dono de pequeno jornal (Tribuna da Imprensa) passaram a ter acesso a potentes emissoras de rádio e a nascente televisão, para ampliar atos de corrupção - o famoso “mar de lama” - em que, diziam, se transformara o governo Vargas. Episódios desastrados protagonizados por figuras menores da confiança de Getúlio complicavam mais ainda o governo. Exemplo: o atentado a Carlos Lacerda, em que morreu o major da Aeronáutica, Rubens Vaz.
A cada dia, fechava-se o cerco. Poucas vozes institucionais o defendiam. A exceção era um jornal impresso de expressão nacional, Última Hora, criado em 1951, sob a inspiração de Getúlio, exatamente para tentar neutralizar a ofensiva cruel contra seu governo. Era pouco, muito pouco. Ao golpe em marcha, faltava apenas marcar a data. Vargas antecipou-se. Preferiu a morte, retardando em 10 anos o golpe de 1964. Mas antes de atirar no peito, ele deixou uma carta. Dela falarei na próxima semana.
Parte 2
Tramava-se a deposição de Getúlio Vargas desde sua posse. Tudo se encaminhava para esse desfecho, após o atentado ao jornalista Carlos Lacerda, em 5 de agosto de 1954, no qual morreu o major Rubens Vaz. O episódio desencadeou o processo final que incluiu à caça paralela aos executores e mandantes e, de quebra, a descoberta de malfeitorias praticadas pela Guarda Pessoal de Vargas, chefiada por Gregório Fortunato, gaucho de sua inteira confiança. Os chefes militares exigiram a renúncia de Getúlio, o governo então já imobilizado e tonto. Seria o fim do populismo de esquerda no Brasil.
Mas não ainda. Com um tiro no próprio peito, Getúlio mudou o rumo da história. Radicalmente. O tiro e uma carta. A carta-testamento. Escrita para as massas, a carta virou peça de resistência popular. A comoção provocada pelo suicídio já bastaria para mobilizar a população contra os golpistas. Mas as razões do gesto, contidas na carta, traçaram o roteiro das manifestações do povo, impactado pela morte trágica do grande chefe.
Vale a pena lembrar trechos da última carta de Vargas.
“Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho.” (...) “Quis criar a liberdade nacional na potencialização de nossas riquezas através da Petrobras, mal esta começa a funcionar, a onda de agitação se avoluma.”
“Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto minha vida. Escolho esse meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater a à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém.”
“Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.”
O resultado, todos conhecemos. O povo ocupou as ruas no Brasil inteiro, deixando acuados os que, horas antes, impunham a renúncia de Vargas. Não teve jeito. Tiveram que esperar 10 anos. E ventos mutantes do curso da história. Conseguiram com o golpe de1964, dado em nome família, com Deus pela liberdade. Contra a corrupção e a subversão.
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