O Maranhão
Pasquale Cipro Neto - FSP
Lençóis embebidos em sangue
Não se sabe ao certo a origem do topônimo (nome de lugar) Maranhão. O que se sabe é que na bela e maltratada capital, São Luís, e no sempre paupérrimo interior, nasceu e nasce muita gente boa, como Ferreira Gullar, Gonçalves Dias, Turíbio Santos ou Joaquim de Sousa Andrade.
Ferreira Gullar é um dos grandes escritores brasileiros do século 20 e querido companheiro nesta Folha.
Numa de suas célebres obras, o monumental "Poema Sujo", do livro homônimo, Gullar percorre um bom tanto do seu próprio in/consciente e, é claro, volta à sua marcante São Luís ("Mas sobretudo meu / corpo / nordestino / Mais que isso / maranhense / Mais que isso / sanluisense").
A singular letra de "O Trenzinho do Caipira", que também está no "Poema Sujo", na verdade é parte do poema, que Ferreira sugere que seja lido com a melodia de Villa Lobos. No texto, Ferreira fala das viagens de trem com o pai, entre São Luís e Teresina.
Outro dos maranhenses citados no primeiro parágrafo é o poeta romântico Gonçalves Dias, autor da antológica e conhecidíssima "Canção do Exílio" ("Minha terra tem palmeiras..."), da qual se fizeram inúmeras paródias.
Virtuose do violão, o maranhense Turíbio Santos é ouvido em todos os cantos do mundo. Sua gravação de "Concerto de Aranjuez" (de Joaquín Rodrigo) é das mais respeitadas no planeta. É vasta a sua discografia, quase toda dedicada à música clássica.
E o quarto maranhense citado? Quem será Joaquim de Sousa Andrade, mais conhecido como "Sousândrade"? Vou apresentá-lo a quem não o conhece com um trecho de "Trem dos Condenados" (de 1976), do pernambucano Marcus Vinicius: "Tomei o trem dos condenados / Que sempre partiu / Bastante adiantado / Quase uma vida inteira / Na frente do trem / Dos comportados / Tomei o trem dos esquecidos / Pela sorte grande nunca alcançada / Mas que nunca dançaram / Conforme a música dos aplausos (...) Enquanto canta o mestre do vagão / Joaquim de Sousa Andrade ali / Adiante da escuridão...".
Sousândrade (1832-1902) estudou letras na Sorbonne e andou também por Nova York e outros recantos. Obviamente considerado "louco" por seus contemporâneos, deixou, entre outras, uma obra premonitória, "O Guesa", que foi reeditada em 2009. Quem assina o prefácio é ninguém menos do que Haroldo de Campos, um dos poetas concretistas, os "redescobridores" de Sousândrade.
E por que a obra é premonitória? Bem, além de ser esteticamente inovadora, por adotar recursos até então inusitados, o livro encerra uma ácida crítica social, centrada na desventura do Guesa, personagem originariamente extraído da mitologia andina, o qual, na obra de Sousândrade, termina sacrificado pelos especuladores da Bolsa de Nova York.
Conheci Sousândrade na adolescência. Fui apresentado a ele por Caetano Veloso, que, em seu genial disco "Araçá Azul", de 1973, incluiu a antológica canção "Gilberto Misterioso" (Caetano Veloso/Sousândrade).
Um dia, em São Luís, fui à biblioteca central, à procura do que havia ali de e sobre Sousândrade. "Quem?", perguntou a funcionária. "Joaquim de Sousa Andrade, o Sousândrade", disse eu. "Não conheço", disse a moça, encerrando a conversa.
Sousândrade nasceu e morreu no Maranhão, no mesmo Maranhão em que se morre como se morre no presídio de Pedrinhas ou em muitos hospitais públicos do Estado, em que não se aprende como não se aprende em suas escolas (o Estado tem baixíssimos índices educacionais), em que ainda se cultua uma espécie de teocracia, cujos deuses são os mesmos há meio século, em que, como também previu Sousândrade, o lado selvagem do capitalismo transforma em privado o que é público.
Para quem aprendeu o tanto que aprendi com tanta gente brilhante do Maranhão, é uma lástima ver o que ainda ocorre por lá. Viva o Maranhão! Viva, Maranhão! É isso.
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