Almanaqueiras: ou não queiras.

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terça-feira, 11 de dezembro de 2012

A vida passa eu telefono e você já não me atende mais...


Fala, Paulo Diniz
Diário de Pernambuco


A rigor, Paulo Diniz está com 72 anos, mas prefere aumentar a própria idade. Para todos os efeitos, diz que tem 73. Com o mês de janeiro batendo à porta, juntamente com o seu aniversário, antecipou o que considera inevitável. “Gosto de prosseguir como o tempo. Tenho uma certa preocupação de estar dentro dele. Em qualquer situação, sempre quis estar inserido no contexto”. Mas o contexto atual é de contratempo, o que talvez explique a mania de envelhecimento voluntário de um dos cantores e compositores mais populares do país.


Autor de canções simples e certeiras, assobiadas até hoje como hinos de casais ensopados de pingos de amor ou de amigos num chope distraído de mesa de bar, o pernambucano de Pesqueira, que até hoje diz pagar caro por uma “acusação” de baianismo artístico, vive num exílio domiciliar no Recife. Depois de alguns meses de conversas via telefone, duas tentativas frustradas de entrevistas pré-agendadas, ele finalmente abriu a porta de casa para a Aurora na tarde de uma terça-feira de outubro.

Uma cadeira de rodas comprada há quatro anos e um balão de oxigênio encostados no canto da sala do apartamento de três quartos, próximo à pracinha de Boa Viagem, sobressaem-se na decoração módica. Bem mais que objetos desconexos, os aparelhos expulsam qualquer dúvida sobre tamanha dificuldade de acesso a um artista que, segundo suas próprias palavras, virou “arquivo”.



Zanzando de um lado pra outro do corredor, um enfermeiro ajuda o dono do imóvel a sentar-se no quarto reversível, transformado em espaço de convivência, onde, em mais um dia de calor, Paulo aparece de jaqueta e boné claros. Está sorridente, emocionado e fisicamente disposto. Uma combinação cada vez mais rara, que ele aproveita para abrir mão de uma rotina radicalmente caseira. É quando se dá ao direito de quebrar os protocolos e, eventualmente, subir num palco, onde só chega na penumbra e não deixa que o anunciem antes de ser acomodado numa cadeira especial, mais alta. A seu pedido, os holofotes só são acionados nos primeiros acordes, e o show, seja ele qual for, já começa em harmonia com alguém que fez da música um anteparo de todas as quedas.


A voz inconfundível de final pigarreado continua bem preservada, mesmo não atingindo os mesmos tons estridentes do início da carreira, quando vendeu quase 1 milhão de discos na década de 1970 com Quero voltar para a Bahia, seu principal hit. Um sucesso estrondoso que o projetou ao mainstream da MPB e, ao mesmo tempo, o colocou em descrédito junto a uma brigada cultural pernambucana, que viu na música uma inconcebível ode azeitada com dendê ao estado “rival”. “Essa música criou muito ciúme. Foi muito aceita, muito cantada. Mas ainda hoje eu pago esse tributo por conta de uns intelectuais daqui”.

Numa homenagem a Wanderléa, eterna musa da Jovem Guarda, promovida por um famoso programa de auditório que prefere não citar, ele ganhou um batismo que consolidou de vez a fama de baiano com DNA paraguaio. O apresentador perguntou se a cantora sentia muita falta do “compositor baiano” Paulo Diniz. “Eu estava lá nos bastidores, me preparando para entrar. Mas fiquei quieto. Bahia é um som muito bom. Bahiiiiiiaaaaaa (falando de forma cantada). Pernambuco é difícil”, simplificou.

Resolveu assumir em verso e sem medo todas as suas paixões, inclusive pelos lugares onde nunca morou. As homenagens musicais sem fronteiras nunca foram bem digeridas na cidade onde nasceu. Diz ter sido alvo de olhares enviesados dos conterrâneos, num ressentimento local que não tinha rosto nem porta-voz. “Digo numa música que ‘Vim de Piripiri’ (município do Piauí) e não sou de lá. Fui lá duas vezes”. Em Capim da Lagoa, extraiu um trecho de um folclore de Pesqueira e o colocou no refrão, o que não foi suficiente para selar as pazes com um passado árido do Agreste.

A mãe era costureira e o pai, gerente de padaria. Foi engraxate, ajudante de mecânico e carregador de compras na feira até arrumar um emprego como locutor do Serviço de Alto-falante de Pesqueira (SAP). Aos 16 anos, partiu para o Recife sem qualquer referência, dormindo em pensões, emprestando a voz para vender tecidos no comércio ou cumprindo bicos na Rádio Jornal como locutor em horários ingratos, rejeitados pelas estrelas da casa.

Quatro anos depois, rumou num ônibus para uma temporada inicialmente difícil no Rio de Janeiro. Em meio a alguns perrengues financeiros, conseguiu integrar o time de locutores da Rádio Globo, onde o interesse pela música prevaleceu, a ponto de Paulo gravar, em 1966, o seu primeiro álbum compacto: O chorão. A levada iê-iê-iê ingênua, pontuada por um gritinho gutural, caiu no gosto do carioca e estourou nas rádios.

Jovem, solteiro e endinheirado com o primeiro single, comprou um Karmann Guia — um dos carrões da época — e dirigiu rumo ao bairro de Botafogo com uma mala cheia de roupas comportadas e um violão no banco de trás, estacionando na rua do casarão Solar da Fossa. Decidiu morar no mal falado imóvel transformado em pensão, onde já residiam vários artistas, intelectuais e toda a fauna do desbunde do Rio. Mergulhou de cabeça numa atmosfera hippie, com liberdade a perder de vista em plena ditadura militar. Vendeu o carrão, deixou o cabelo black power, mas manteve o violão debaixo do braço.

Era vizinho e amigo do poeta Paulo Leminski, de quem ganhou o verso “Tire o arco-íris da sua moringa” (para muitos, uma das primeiras referências à maconha na música nacional, que passou em branco pela censura). Foi confidente da atriz Darlene Glória, que também morava no solar e namorava o bandido mais famoso do Rio à época, Mariel Mariscott. Cansou de topar com Tim Maia nos corredores do templo udigrudi carioca. “Todos vivíamos em paz. Não importava nada: pele, orientação sexual. Eu ia na casa de um vizinho, tomava uma cerveja, comia um tira-gosto, dava uma bola (risos). Era muito comum na época e eu estava sempre em falta. Tinha de ir na casa de alguém”.

Toninho Vaz, jornalista curitibano radicado no Rio, autor do livro Solar da Fossa – Um território de liberdade (editora Casa da Palavra), explica que a transformação pessoal do pernambucano ao longo de sua estadia no casarão foi uma das mais emblemáticas. “Entre todos os artistas que moraram lá, ele certamente foi um dos mais importantes. Representava como poucos aquele ambiente livre, sem amarras, sempre com o violão pra cima e pra baixo”.

Paulo lidou com o sucesso com a “precariedade de quem tinha pouco tempo de casa”. Torrou todo o dinheiro do primeiro disco e virou hippie. “Usava umas calças desbotadas ou rasgadas, uma bota, com aquelas camisas malhadas que eu mesmo fazia. Quando eu passava na rua, ninguém me via. As pessoas cegavam”, conta.

A sensação de desprezo o perturbou até bolar um verso, inserido depois no recheio do carro-chefe Quero voltar pra Bahia: “Eu tenho andado tão só. Quem me olha nem me vê”, anotou. Inspirado no jornal O Pasquim, lançou o disco em 1970, voltando para a pista da música brasileira quatro anos depois de O chorão, e inaugurando a sua década de ouro. Em pleno estouro, levou as primeiras bordoadas do status quo da cultura nacional, como a do ator Grande Otelo, que lhe direcionou uma reprimenda: “Você que fez essa música Quero voltar pra Bahia? Pois não deveria. Quem deveria ter feito era Caetano Veloso”. Paulo não engoliu a crítica e devolveu sem elevar o tom: “Mas ele não fez. Eu cheguei antes”. Em tempo: demolido em 1971, o Solar da Fossa cedeu lugar a um shopping center. O pernambucano foi um dos últimos a deixar o local.

Na década de 1970, no auge da carreira, com o inseparável violão


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