O caminhão e a feira
As noites pareciam intermináveis. O medo de dormir e ser esquecida antecipava as vésperas das viagens para a feira livre. Como éramos muitos irmãos, dez, nossos pais faziam uma espécie de revezamento para que todos fossem contemplados em acompanhá-los em alguns sábados uma vez que as condições financeiras não permitiam vir à feira todos os sábados. E, quando era o meu dia de vir com papai ou mamãe para a feira livre de Cajazeiras, uma ansiedade antecipada contagiava meus dias por toda a semana. Começava a vislumbrar na imaginação o mundo encantado da cidade, com suas ruas pavimentadas, suas casas geminadas, suas novidades urbanas, as casas de meus tios Possidônio e Espedito, onde tomávamos café com chocolate e pão da rua.
A aventura de vir para a feira livre começava na viagem para cidade. Acordávamos ainda pela madrugada, sobretudo, nos períodos de inverno quando, muitas vezes, o percurso esticava por Ipaumirim em razão da intransitabilidade das estradas de terra. Normalmente o transporte era feito no caminhão de três boléias de Joaquim Pajeú. Minha expectativa era ser passageira da primeira boléia, que não tinha portas e apenas estribos de ferro onde era possível apoiar os pés. Mas essa expectativa sempre era abortada antes de chegar a Cachoeira dos Índios, na época por muitos tratada pelo seu antigo nome de vila, Catingueira. A voz determinada de Joaquim Pajeú ordenava: meninos, para a segunda boléia. Logo depois, outra ordem: meninos para a terceira boléia, e, por fim, a tão temida sentença: meninos para a carroceria. Os lugares eram ocupados pelos adultos, sobretudo, mulheres, que, a margem da estrada, com seus sacos de tecido e cestas de cipó, rumavam para a feira livre. Em minha cabeça construía uma convicção: um dia serei grande e irei até Cajazeiras na primeira boléia do caminhão de Joaquim Pajeú. Cresci e a modernidade tirou de circulação o veículo de minha infância e de meus sonhos.
Na feira livre um mundo de novidades se descortinava para mim. Os picolés avidamente consumidos com o medo de sujar a roupa. O balaio de bonecas de pano que prendia a atenção e despertava o interesse em possuir um brinquedo com a perfeição das artesãs que, magistralmente, construíam sonhos com pedaços de pano. Sonhos bem distantes das improvisadas e disformes bonecas que Inácia Paulo, na sua incomensurável bondade, nos presenteava. A água gelada consumida em casa dos tios. O medo de se desprender das mãos de papai ou mamãe e se perder na imensidão das barracas e desconhecidos da feira. Os cachimbos de açúcar. Os vendedores das lojas de tecido com suas gravatas impondo respeito e admiração. A loja de miudezas de Terezinha Martins e seu riso franco e solto, que ecoava entre botões, marrafas, carretéis de linha, sianinhas, rendas e bicos.
Mas a feira livre chegava ao fim. A expectativa começava a ser construída para a próxima viagem, que poderia demorar meses e, nas nossas imaginações, corria tão célere quanto o breve tempo que viajávamos na boléia do caminhão de Joaquim Pajeú.
Mariana Moreira
ProfessoraUniversitária e Jornalista
Diário do Sertão.
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