Esse cajazeirense sempre foi para mim um dos sacerdotes mais bacanas de Cajazeiras. Quando era menino e ia à igreja, uma das minhas preferidas era a Matriz de Nossa Senhora de Fátima. Já nesse tempo era o Padre Raimundo o seu pároco. Gostava de ir à missa das sete da manhã. Acordava de madrugada com a avó Sancha dizendo: é hora, levanta!
Rezávamos, tomávamos café e, em seguida, rumávamos à igreja passando ao largo do Açude Grande, um frio danado à beira d'água, uma alegria sem igual de menino. Era um pouco mais alto que um botijão de gás de cozinha, mas já desse tamanho havia em mim um explícito encanto pelo sacerdócio. Sim, para quem não sabia, um dia tive ímpetos de me fazer padre. Projeto que não cumpri por descobrir outros interesses, outras vocações.
A avó Sancha preparara o terreno desde muito. Moleque, me ensinou todas as orações católicas, o credo inteiro da religião. Fez sugar o catolicismo tão logo abri os olhos para o Sagrado. Minha avó ensinou-me a Bíblia, me deu terços e rosários. A primeira comunhão veio ligeira; rápido também me tornava coroinha, experiência que fez tatear o mapa do fascínio que leva ao árduo caminho do clericato.
Não por acaso, naquelas manhãs, ia à missa da Matriz de Fátima não como quem faz o primeiro passeio do domingo. Era como viajar para conhecer um reino cheio de mistérios e surpresas, impressão retida das leituras precoces da Bíblia Sagrada. Enquanto raios límpidos de sol pingavam na manhã da cidade, Cajazeiras ainda dormia. Ouvia-se aqui e ali um rádio ligado, a voz de Chagas Amaro no ar, Roberto Carlos em música e comentários. Nesse cenário, eu e minha avó pegávamos a estrada para ouvir a missa do Padre Raimundo. Se por algum motivo não fôssemos, o locutor solicitava o sinal à igreja e a rádio transmitia o ritual.
Antes de ter início a liturgia, João de Deus Quirino ensaiava os benditos com um maestro que acompanhava o coral liderado pelo advogado. Que especiais aquelas missas! Eram “missas cantadas", como explicava minha avó Sancha. Via-se um esplendor de emoção, devotos de todas as classes entoavam cânticos e preparavam a chegada do líder espiritual de todos nós. Quando Padre Raimundo aparecia, havia uma reverência como que combinada entre os presentes.
Ele começava a missa com a voz potente de barítono: “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. E, com gestos leves como um regente de uma melodia de suave compasso, nos acolhia simpático, até respondermos com toda a alma: "Bendito seja Deus que nos reuniu no amor de Cristo". Ali, abençoando a manhã, encarnava um dos mais serenos sacerdotes cajazeirenses de todos os tempos.
Padre Raimundo não pregava como se vendesse no mercado, a exemplo de padres e pastores desses nossos dias. Sua oratória era como ele, tranquila. Falava de Deus com a serenidade com que um monge fala aos céus, em total contemplação. Embora pregasse com calma e tranquilidade, ora mostrava que um santo também era feito de paciência, que, por natural, se esgotava. Inclusive com as crianças, e os pais das crianças que não continham seus filhos a correr e a gritar pela igreja. (Dos raros momentos em que se viu Padre Raimundo impaciente, lembre-se algumas vezes em que, corajoso, mandou cercar a área frontal e lateral da igreja Nossa Senhora de Fátima, durante o carnaval, causando um reboliço na cidade. Mas estava certo. Nenhum padre é obrigado a abrir sua igreja e receber na cara a catinga de urina que bêbados deixam após a farra momesca. Estava apenas defendendo um local sagrado para muitos homens e mulheres que dele tinham toda a atenção).
Importa que a missa de Padre Raimundo era a melhor em Cajazeiras. Talvez e principalmente porque falava manso, pausado, uma prosódia límpida de dar inveja; àquela hora ouvi-lo comentar o Evangelho era uma grata experiência para um dia que mal iniciava. Adorava ouvir sua pregação, gostava de como ele conversava após a missa. Era muito atencioso! Como coroinha passei anos ao seu lado nas missas do sábado e domingo, visitando igrejas e capelas em sítios e cidades próximas.
Nessas andanças passei a admirá-lo ainda mais, sua inteligência e sua cortesia. Um sujeito simples, educado, elegante acima de tudo. Quando o visitei pela primeira vez, pude notar que cercava-se de livros. Ficava besta ao ver que, tão calado e discreto, era ligado nos principais acontecimentos. Assinava jornais, revistas, ouvia e assistia aos noticiários. Vivia informado, portanto, bem informado do mundo, quase sempre matéria que ele utilizava durante os sermões.
Um dia fui encontrá-lo numa pequena propriedade de sua família, no sítio Prensa. Lavrava. Com uma pequena enxada de roça, o testemunharia ainda mais simples. De chapéu de palha, camisa de mangas compridas dobradas até o cotovelo, colada ao corpo pelo calor do sertão (pela primeira vez também o via trajando um calção longo que lhe cobria os joelhos!), fazia a limpa de uma pequena plantação de feijão e milho. Deu-me esse quadro a imagem que talvez procurasse ver em todos os nossos contatos: o Padre Raimundo em comunhão com o que há de mais simples na vida: o contato humilde com a terra e a natureza. Concluí daquilo que ele era, para mim, a pessoa mais simples que até então conhecera. Além de tê-lo como um sábio, sujeito culto que entendia tão bem o Evangelho, para os meus talvez dez ou onze anos aquilo era bonito e impressionava. Juro que de início fiquei a milhas de entender o significado daquele encontro. Só anos depois aprendi que a posição social de um homem não diz nada frente ao que ele é realmente, não importa que trabalho realize.
Quando me tornei maior, a vida me distanciou do Padre Raimundo. Mas isto não foi responsável por abandonar o ideal do sacerdócio. Fiz a tentativa com o corretíssimo e exigentíssimo Padre Gervásio Queiroga. Não encontrei Deus nos bancos do seminário. Fora dele, descobri a Arte e todas as possíveis imagens da Beleza. Era o Sublime, e isso, para mim, também era Deus.
Mas Padre Raimundo continuou a ter minha admiração. Nos reencontramos quando comecei a escrever o livro sobre seu tio em segundo grau, o Padre Anselmo Duarte Rolim. Acolheu-me em sua residência com atenção e bondade. Falou-me sobre o parente o quanto pôde. Cortês, elegante, paciente. Não demonstrou cansaço em nenhum instante, apesar da idade. Só lamentava não ter mais saúde para escrever ele mesmo o livro a que me desafiei. Havia lhe roubado a ideia? Não, coincidentemente era a primeira vez que me falava de tal interesse.
Esta semana, ao saber de seu aniversário de 80 anos, tive uma comovente saudade do Padre Raimundo. Desejo que continue o mesmo espírito. Que continua elegante, correto, simpático, cortês, tranquilo e paciente. Pelo menos, homem humilde, entenda e aceite tudo o que Deus lhe reserva. Em Cajazeiras é entre os padres o que, como poucos, durante décadas, vivenciou o sacerdócio como verdadeiro sacerdócio: no serviço de trabalhar pela comunidade como líder na igreja, pela igreja e o povo. Nunca se aventurou em coisa que não dissesse respeito ao gloriosos destino que ele agarrou com total humildade. Foi professor de seminário e educou a muitos, no sentido de tomar boas direções na vida. Tenho certeza de que teve influência direta em minha personalidade. Tornei-me o que sou também por ter conhecido seu exemplo de simplicidade e fidelidade, toda uma vida dedicada ao cristianismo.
Enquanto puder, o lembrarei satisfeito, dizendo para quem quiser saber que o conheci, que fomos e somos amigos. Padre Raimundo Honório Rolim é, na verdade, um mestre honrado, não apenas por mim, por todos que o conhecem, brilhante vocação que Cajazeiras também admira como um dos seus sacerdotes mais bacanas. Brindemos, pois, seus 80 anos. À sua alegria de padre e amigo dos cajazeirenses. Brindemos à sua saúde! Abraços, abraços de fé e amizade!
Adalbeto dos Santos adalbertodossantos@gmail.com
Professor em Cajazeiras e atuou na imprensa da cidade como redator e articulista. Escreveu o PADRE E A RUA que conta a história do sacerdote Anselmo Duarte Rolim, personagem folclórico da cidade. É colunista do portal Cronicas Cariocas e colaborador do jornal Gazeta do Alto Piranhas.
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