Estudante de Cajazeiras
Sempre me reporto a essas histórias e estórias aqui contadas por mim, na maioria, transcorridas na segunda metade dos anos sessenta até ao fim da primeira metade da década de setenta, que foi o período que vivi mais intensamente em Cajazeiras.
Era comum, aos sábados e, principalmente aos domingos, sairmos de casa, a rapaziada, já com os resultados dos jogos do campeonato carioca na ponta da língua. Refiro-me ao campeonato carioca porque era o de equipes com maiores torcidas em Cajazeiras, e, acredito, que no Brasil inteiro.
Eu e meus irmãos, à noite, depois do jantar saindo pra rua, excepcionalmente não sabendo os resultados dos jogos não demorávamos em se inteirarmos de seus resultados na primeira parada, obrigatória, de onde saberíamos tudo, além dos resultados em si quem fez os gols e como foram as jogadas. Essa parada obrigatória era o poste da esquina da casa de “seu” Sinval do Vale”. Esse poste era rodeado por dois batentes, um superior e outro inferior, próprios pra gente se sentar e ficar discutindo os jogos e amenidades, e, daí, partíamos para a Praça João Pessoa e outros lugares. Essa primeira parada era democrática nas discussões: juntava-se as mais diversas cores clubísticas.
Na Praça João Pessoa a segunda parada obrigatória era lá na farmácia de Haroldo, aonde quem chegasse primeiro sentava no banco posto na calçada, deixando, claro, o espaço de Haroldo que constantemente se levantava para ir atender clientes. E aí a discussão, a análise e as gozações sobre perdedores e ganhadores era a tônica. Haroldo, um flamenguista inveterado, era difícil convencê-lo de que o Flamengo tinha jogado uma bosta naquele dia. Certo sei que isso é difícil para qualquer flamenguista. Essa segunda parada, portanto, se concentrava mais flamenguistas.
Havia uma terceira parada para se parlamentar. Era lá na concessionária de veículos da Willys, de Zé Cavalcanti, na Rua Juvêncio Carneiro, onde seu vigia, Zé de Souza, deitado no chão, sobre um papelão, com um rádio à pilha próximo ao ouvido, sintonizado na Rádio Tupi do Rio de Janeiro, ficava ouvindo jogos e comentários. Quem chegasse teria que ouvir os discursos irredutíveis de Zé de Souza de que o Vasco da Gama, seu time de coração, pulmão, intestino e fígado, jogara muitíssimo bem, mesmo nós sabendo de que o Vasco jogara uma verdadeira merda. Então, essa era uma parada de vascaínos.
A quarta parada obrigatória era aos domingos, tendo como gestor das discussões, também Zé de Souza, sendo que dessa vez ele agora estava em sua cadeira de engraxate em frente a Meredinha, próxima à entrada do Mercado, com vista para a Praça João Pessoa. A clientela também mudava. Não eram os jovens lá da Williams, e sim os homens casados, vestidos de linhos, calças bem engomadas, com palavras mais comedidas nos comentários futebolísticos. Zé de Souza, que já passara a semana inteira ouvindo todos os jogos e todos os comentários da semana no rádio, era considerado como titular de pós-doutorado em futebol.
As análises e comentários de Zé de Souza eram ouvidos pelos senhores privilegiados que, sentados em sua cadeira de engraxate, que parecia mais um trono, e a cada novo cliente era só dá uma virada no coxim para o próximo freguês não sentar no quente da bunda da pessoa que acabara de sair, teriam seus sapatos brilhando mais do que catarro em parede – como é dito popularmente - para irem, ou quando retornavam, da missa da Matriz. Eram senhores que iam ouvir Padre Sitônio limpar suas almas, depois que durante a semana deram um pulinho no cabaré de Lilia para afogar o ganso, fugitivos que eram de comer no mesmo prato como tuberculosos. Eram senhores “da sociedade”, de moral ilibada e que tinham uma mão boa para depositar na sacola de ofertas da missa, notas graúdas, sob o olhar vigilante de Zé Sacristão. Então, essa era uma parada em que Zé de Souza tinha que ser eclético e ético nas palavras ludopédicas.
A quinta parada obrigatória para discussão sobre futebol era variada. Ia dos bancos da Praça João Pessoa, passando pelos bancos da Praça do Espinho, pelos bares e budegas... até chegar aos bancos da Praça Arco Verde, em frente à Catedral, aos domingos à noite, no horário da missa do Bispo. É verdade que o papo, e a clientela eram os jovens, não era cem por cento futebol.
Como éramos obrigados por nossos pais a irmos à missa uma vez por semana, íamos no fechar dos olhos do fim de semana, no domingo à noite, às dezenove horas. Ficávamos indo e voltando entre o átrio da igreja e os bancos da Praça Arco Verde. Considerávamos isso como missa assistida.
O eco das palavras santas de Dom Zacarias, pronunciadas lá do formoso altar até a porta principal de entrada da igreja, chegava para nós já esfarelado, e, misturado com as narrações que fazíamos em mãos em conchas de gols de Zico e Roberto Dinamite, em surdina, nos ouvidos de um adversário vascaino/flamenguista, resultava num samba maluco da fé no futebol e na cristandade reverenciada nos cansativos e intermináveis discursos, melhor dizendo, nos sermões de Dom Zacarias, que, com aquele anelzão de ouro maciço em seu dedo exortava o combate à fome do sertão.
Jogos comentados, papos mentirosos de que se tinha sarrado menina tal, que já tinha batido cinco punhetas seguidas, e mentiras mil, e Dom Zacarias não terminava seu sermão. Parecia que o fim do mundo chegaria e o sermão do Bispo não. Noventa minutos de uma partida de futebol, mais a prorrogação, não era tempo suficiente para Dom Zacarias expressar a sua bondade, mas seria suficiente para levar-nos ao cadafalso porque não assistiamos à missa concentrados na fé cristã e sim em Zico e Roberto Dinamite, os deuses do futebol de então.
Eduardo Pereira
Conte suas histórias/estórias e nos envie para publicarmos aqui.
Nenhum comentário:
Postar um comentário