Almanaqueiras: ou não queiras.

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segunda-feira, 27 de setembro de 2010

LADRI DE BICILETTI





Dia desses estava eu vendo reportagem de noticiário televisivo sobre a maravilha que era andar em transporte público em Paris. A pessoa pega metrôs com a maior facilidade e, quando desce em uma estação tem a sua disposição bicicletas de aluguel para se deslocar a certos pontos da cidade.
Ter transporte público à disposição regularmente, inda mais com a velocidade do metrô, só mesmo em país civilizado e, mais civilizado ainda, é você alugar uma bicicleta a preço módico – não chega a três reais – e se deslocar pelas proximidades de seu lugar de destino e chegar lá encostar a bicicleta e continuar seu rumo. Ninguém rouba a bicicleta, nem um pito se quer.   
Isso me fez lembrar quando eu morava em Cajazeiras, em minha infância, quando nós alugávamos bicicletas para darmos umas passeadas pela cidade. É verdade que as bicicletas não eram novas, nem de longe, em comparação com as de Paris, mas o grau de consciência, pelo menos quanto à devolução, era o mesmo dos parisienses. A devolução era correta, porém, o estado em que as bicicletas pós-passeios ficavam, já não tínhamos o grau de consciência do primeiro mundo.  
A loja de aluguel das bicicletas era ali onde se costumava serem instalados os parques de diversões que faziam temporadas em Cajazeiras – na Camilo de Holanda também tinha uma loja. Alugávamos as bicicletas velhas e saímos para o primeiro teste para saber se a bicha estava em ordem, descendo os degraus da Praça da Matriz, depois que fazíamos umas piruetas em volta do coreto da igreja. Diga-se de passagem, piruetas arriscadas, tendo em vista que vínhamos um de frente para o outro, como se fôssemos chocar, e aí dávamos um desguio de leve gritando um “ôôôôpaaaaaaa!”.
Não tínhamos respeito nenhum com meio-fio, tanto para descer quanto para subir. Muito menos preocupação se a janta iria empenar ou não. Janta – era assim que falávamos – tem como nome correto ‘jante’, que significa aro da roda da bicicleta.
Se o pneu furasse íamos devolver a bicicleta alegando causa involuntária, mas não saímos da loja sem antes ouvirmos impropérios com nossas santas mães que não tinham a menor idéia onde estávamos naquele momento.
Como as bicicletas eram alugadas por tempo, se chegássemos bastante atrasados tínhamos que pagar a diferença. Quando se tinha dinheiro, tudo bem, estava tudo pela ordem, e, do contrário, o bicho pegava, para não dize que reinava um impasse. Se algum  colega tivesse dinheiro para lhe emprestar, tudo estaria resolvido, mas quando o reverso se expunha a choradeira para se pagar “depois” não era levada em conta pelo dono das bicicletas, porque sabia ele da certeza de não mais se ver a cor de dinheiro nunca mais, o que ele estava certo.
E aí tinha neguinho que chorava porque éramos obrigados a deixar nossas sandálias no empenho. E por que chorar se era tão simples assim, deixar os chinelos empenhados? Simples, vírgula. Se chegássemos em casa sem nossas japonesas o pau comia, a surra era certa. Onde já se viu sairmos com sandálias e voltarmos sem? Isso era coisa de gente moleque, e nossos pais não admitiam esse comportamento. Como seria no dia seguinte você ficar descalço em casa?
A verdade é que nossa aprendizagem em rodar bicicleta se deu nesses aluguéis, onde podíamos cair irresponsavelmente de propósito ou sem. Como os parisienses, devolvíamos as bicicletas sem nenhuma mácula na consciência, nada de roubá-las, nem a sela, nem o pito se quer. Em Paris, provavelmente, deve existir leis severas para quem pratique esses atos. Nossa lei era, primeiro a revisão que o dono da loja fazia na bike, e, segundo, tínhamos nossos pais encangalhados no lombo de nossas consciências.
Para Paris e a Europa chegar a esse grau de consciência, é porque elas tiveram que comer muita terra nas lutas de suas histórias no pós-guerra, tão bem retratado no belíssimo – sem medo do exagero do adjetivo – filme de Vittorio De Sica, um clássico do neo-realismo italiano.  O filme apresenta a situação de muitos italianos que, depois da guerra – 45 – estavam desempregados, e Antonio Ricci é um deles, até o dia em que consegue um emprego como colocador de cartazes. Entretanto, para conseguir o trabalho, precisava de uma bicicleta, o que o fez penhorar objetos de casa para conseguir adquirir uma. A trama se desenrola a partir do dia em que sua bicicleta é roubada e, junto com seu filho Bruno ele a procura por toda Roma.

Eduardo Pereira
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