Almanaqueiras: ou não queiras.

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quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Afinal, cadê a doutrinação comunista? ser comunista exige um pouco de cultura, meu caro. ninguém é comunista por apenas gostar da cor vermelha.

Livros didáticos de história não justificam as alegações do Escola sem Partido

Marcelo Coelho

Andei vendo alguns livros didáticos de história, publicados em 2015, 2017 e 2018.



Ainda que eu considere assustadoras as intenções de quem defende o Escola sem Partido, tinha alguma desconfiança de que a bibliografia corrente fosse meio desequilibrada com relação, por exemplo, a Cuba ou ao governo João Goulart.

Sem dúvida, o autoritarismo de Fidel Castro e seus companheiros é habitualmente minimizado pela esquerda, e não sou cego a ponto de negar que professores de humanidades, em geral, educaram-se sob a influência de Marx.

No que estão certíssimos, afinal. Mesmo a direita teria dificuldades em entender a história mundial sem considerar os conflitos de interesse entre assalariados e detentores dos meios de produção.

Mas não era irrazoável supor que parte do ensino de história no primeiro e segundo graus sofresse de alguma parcialidade factual.

Não foi isso o que eu encontrei nos livros consultados. Vêm de editoras de grande porte, como a Moderna e a Ática, sendo de imaginar que tenham alta circulação.

Revolução Cubana? Eis o que diz um livro de "autoria coletiva" (será isso comunismo?) publicado em 2018.

"O regime socialista adotado em Cuba universalizou o ensino, reduziu a mortalidade infantil e o desemprego. O acesso à moradia e à saúde pública foi incrementado. A indústria, contudo, não foi incrementada."

Segundo parágrafo. "No terreno político foi implantado um regime nos moldes soviéticos, caracterizado pela ditadura de um partido único (o Partido Comunista), pela supressão das liberdades democráticas e pela perseguição aos opositores do regime."

Há um box favorável ao programa Mais Médicos; mas é loucura dizer que esse texto, algo impessoal e burocrático, tenha viés doutrinário.

Vamos tentar outro, da FTD. Narra-se o "golpe civil-militar" de 1964. "Eram contrários às reformas de base os grandes empresários, parte do alto clero e dos oficiais do Exército e organizações como o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), ambas mantidas com dinheiro de empresários brasileiros e estadunidenses." Verdade.

"As posições se radicalizavam" (será parcial esse relato?). "Os movimentos sociais exigiam as reformas de base que João Goulart havia prometido; a oposição acusava o presidente de ter perdido a autoridade e de ser cúmplice do comunismo internacional."

Note-se que nem a expressão "comunismo internacional" foi colocada ironicamente entre aspas no texto.

"Sem o apoio do Parlamento, Goulart optou por se aproximar dos movimentos sociais. Em 13 de março, liderou um gigantesco comício pelas reformas de base [...]."

O livro acrescenta que, seis dias depois, "autoridades civis e religiosas" organizaram a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, "igualmente grande, (com) cerca de 300 mil pessoas".

O estopim para a queda de Goulart não fica sem ser mencionado. O governo Goulart "não puniu" os marinheiros que promoviam manifestação no Sindicato dos Metalúrgicos da Guanabara nem os fuzileiros navais que se recusaram a reprimi-la.

"Oficiais das Forças Armadas consideraram essa atitude um incentivo à quebra da disciplina e da hierarquia militar." O livro é de 2015, e sua neutralidade beira a indiferença.

Uma publicação da Ática, voltada para os séculos 20 e 21, conta a construção do Muro de Berlim. "A Alemanha Oriental, comunista, não tinha o mesmo desenvolvimento (da Alemanha Ocidental) e seu governo não respeitava as liberdades públicas."

"Como resultado da falta de liberdade, muitas pessoas começaram a fugir da Alemanha comunista [...]. Com o objetivo de impedir as fugas de seu território, o governo da Alemanha Oriental instalou cercas de arame farpado, campos minados, cães de guarda, torres de vigilância e muitos soldados ao longo de sua fronteira com a Alemanha Ocidental."

Apologia do marxismo? Please...

Em geral, o texto desses livros poderia ser mais vivo e colorido, recorrendo a detalhes e episódios emocionantes, coisa que a história oferece sempre.

Mas falar em "doutrinação de esquerda" é puro delírio. Mesmo se fosse, o projeto de controlar a opinião de professores pela espionagem informal e por sanções legislativas é odioso.

Se há uma "guerra cultural" pela "hegemonia gramsciana" do "marxismo", que os incomodados reajam pelo debate, com seus próprios livros e publicistas. Aliás, já fazem isso com sucesso. Reprimir é coisa de fanáticos; de golpistas; pior. Usarei o termo? De comunistas.

Marcelo Coelho
Membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”. É mestre em sociologia pela USP.

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