Almanaqueiras: ou não queiras.

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segunda-feira, 14 de maio de 2018

Já no caso dos empregados domésticos e particulares, a imposição do uso é para desunificar, ou seja, lembrar “quem é quem”.

O papel higiênico 

Martha Medeiros



Falamos tanto em acabar com as injustiças sociais e às vezes não conseguimos mudar regras dentro da própria casa

Em 2005, publiquei uma crônica sobre um episódio da minha infância. Estava na casa de uma colega de aula. Lá pelas tantas, fui ao banheiro — só havia um. Horas depois, precisei ir ao banheiro de novo, só que ele estava ocupado pelo irmão da minha colega. Foi quando ela perguntou se eu me importaria de usar o banheiro da empregada. Lógico que não. Corri para lá, e foi então que vi. O papel higiênico da empregada era diferente do usado pela família. Áspero. Parecia uma lixa. Muito mais barato.

Era costume: comprava-se um papel higiênico macio para os banheiros sociais e outro de pior qualidade para os banheiros de serviço. As relações entre empregados e patrões continuam sendo uma maneira de flagrar preconceitos. Não é por economia que se compra papel higiênico mais ralé para a empregada, ainda que seja este o argumento. É para segmentar as castas. É para manter a hierarquia. É pela manutenção do poder.

Vale para a exigência do uniforme também. O nome já diz: o objetivo dele é unificar — caso do uso em alguns espaços públicos e coletivos, como escolas e fábricas. Já no caso dos empregados domésticos e particulares, a imposição do uso é para desunificar, ou seja, lembrar “quem é quem”.

Em 1993, morei alguns meses no Chile e minha funcionária aceitou ir junto (trabalha comigo há 27 anos). Ela nunca usou uniforme e, chegando lá, se deparou com um quadro incomum: não se via uma única empregada sem usar um guarda-pó. Nem no prédio em que morávamos, nem nas pracinhas, nem no super. Um dia, me pediu para comprar um para ela. Queria fazer amizade. As parceiras estavam achando ela meio besta.

Falamos tanto em acabar com as injustiças sociais e às vezes não conseguimos mudar regras dentro da própria casa. Todos nós temos um potencial revolucionário que pode se manifestar através de pequenos gestos. Só uma elite conservadora e cafona depende de empregados até nos fins de semana, uniformizados como se estivessem no Palácio de Buckingham e tendo que atender aos caprichos de adolescentes que não levantam do sofá para fazer o próprio sanduíche.

O assunto é bem mais sério e abrangente, mas permeia este aspecto também: o quanto, achando que somos senhorios, não passamos de escravos de uma pretensa superioridade. Pobres de nós e pobre de quem se submete aos nossos delírios de grandeza, quando tudo poderia ser mais simples: eu preciso da sua ajuda e você precisa de trabalho — ninguém é mais importante que ninguém por causa disso. E o papel higiênico tem que ser o mesmo para todos. Essa reivindicação, simbólica, segue valendo 13 anos depois daquela crônica. Aliás, 130 anos depois.

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