Almanaqueiras: ou não queiras.

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sábado, 19 de maio de 2018

É um governo que trata a população brasileira como laranjas: tem sobrando, pega uma, chupa, joga fora na estrada e pega outra”, diz o produtor.

Aos 90, Luiz Carlos Barreto esbanja bom humor ao falar da idade, mas lamenta a situação do Brasil

‘Se tivesse 60, ia para o Canadá’

Jornal do BrasilMÔNICA LOUREIRO monica.loureiro@jb.com.br
Não quero contar a minha história no cinema, considero irrelevante. Jamais pensei, como retirante nordestino, chegar aos 90 anos de idade e, pior, vendo o Brasil regredindo à época em que nasci”, desabafa Luiz Carlos Barreto. Um dos mais importantes nomes do cinema brasileiro, ele prefere deixar de lado a sua história profissional de 73 anos para demonstrar a sua desesperança com a atual situação política, social e cultural do país. “O Brasil é um doente terminal!”, define. 
Em entrevista na produtora LC Barreto, em Botafogo - que completa 55 anos de atividade -, Barreto começa falando de sua trajetória até entrar no mercado cinematográfico com “O assalto ao trem pagador” (de Roberto Farias, 1962). Os detalhes do que conta são ricos, as histórias incríveis, mas é a indignação que dá o tom. A de um homem que sabe do que fala, pois já vivenciou igualmente a miséria no interior do Brasil e a festa no iate de um magnata grego. Esta noite, ao lado da parceira de vida há 64 anos, a produtora Lucy, vai comemorar o aniversário entre os amigos que fez ao longo de todo esse tempo no restaurante La Fiorentina, no Leme. O aniversário mesmo do cineasta nascido em Sobral, Ceará, e radicado no Rio de Janeiro, é amanhã. 


“Minha entrada no cinema foi um processo que veio se formando através do jornalismo e da fotografia. Comecei aos 17 anos como revisor no jornal ‘O Democrata’, que depois foi vendido para o Partido Comunista. Já tinha sido promovido a repórter durante o pós-guerra, época em que o partido ocupava vários postos na Câmara. Só que aquele famoso discurso de Luís Carlos Prestes foi deturpado e, aí, veio a ilegalidade. Como eu era atuante na militância, estava muito visado e minha mãe achou melhor eu vir para o Rio. Aqui, cheguei a procurar a ‘Tribuna Popular’, mas fui aconselhado a não me envolver”, conta. 
Sua carreira quase tomou um rumo diferente quando foi trabalhar na Siderúrgica Nacional: “Comecei a jogar futebol no time da empresa e fui para o juvenil do Flamengo. Cheguei à categoria de aspirante só que, em 1949, tive de me alistar no serviço militar. Ainda cheguei a ser emprestado para o Canto do Rio, de Niterói, só que não pagavam. Um dia fui lá cobrar, acompanhado do Airton Vieira de Morais, conhecido como ‘Sansão’. Como a diretoria não nos deu nenhuma posição, antes de sairmos, abrimos o armário das taças e fizemos xixi dentro de todas”,  diverte-se, ao relembrar a breve carreira no esporte. 
O caminho do jornalismo foi retomado através da contratação pela revista “A Cigarra”, onde ficou pouco, pois, ao ser escalado para cobrir a Copa do Mundo de 1950, o desempenho foi tão bom que passou para o quadro da “Cruzeiro”: “A revista era o maior órgão de comunicação de massa da época, onde fiquei até 1964. Ela foi meu curso universitário e onde me apaixonei pela fotografia”, resume a importância da experiência.     No final de 1953, Barreto propôs à revista ser correspondente na França. Um tanto de interesse profissional, porém muito mais pessoal: Lucy Barreto já era sua namorada e havia ganho uma bolsa para estudar piano em Paris. “Eu fui me garantir”, comenta, sorrindo para a mulher com quem se uniu em território europeu. “Nos casamos em 17 de agosto de 1954 no civil e dia 18 na igreja. A lua de mel foi trabalhando no Festival de Cannes”, diz. 
Foi nessa época que ele teve seu primeiro contato com Assis Chateaubriand, com quem acabaria tendo uma relação de filho para pai. “Ele me requisitava para ficar 24 horas com ele, às vezes no mesmo hotel. Cobri a Copa de 1954 e, depois daquele jogo contra a Hungria que deu um quiprocó e a imprensa brasileira começou a dizer que o juiz era comunista, eu fui enviado para uma cidade  do interior da Inglaterra para investigar a vida do cidadão. Resultado: descobri que ele era do Partido Conservador!”, diverte-se. 
No final daquele ano, já de volta ao Brasil e com Lucy grávida de Bruno, o primeiro dos três filho, Barreto conta que a sua transição para o cinema já estava a caminho. “Foi na época em que ‘Rio 40 graus’ estava censurado pelo governo Lacerda e fui fazer a reportagem sobre a campanha pela liberação do filme. Depois, eu e Lucy voltamos à Europa para cobrir várias edições de Cannes e Veneza. E, em 1962, numa viagem à Bahia, o pintor Genaro Carvalho mostrou um curta e me falou que o garoto que fez era um gênio. Fomos visitar o set na Praia de Buraquinho, onde Glauber Rocha estava filmando uma roda de samba e fotografei tudo”, conta sobre as filmagens de “Barravento”. 
No Rio, Barreto tentou emplacar a foto das atrizes Lucy Carvalho e Luiza Maranhão, do elenco do filme, na capa da revista. “Eu disse para o diretor de redação, Accioly Neto, que tinha uma capa que mostrava a diversidade brasileira, uma mulher branca e uma negra. Só que ele, muito reacionário, lembrou que as capas já vinham prontas, estampando astros de Hollywood. Levei a sério e fui ao presidente, que aprovou a foto. Quando Glauber viu a revista, escreveu uma carta dizendo que ali começava a revolução cultural do Brasil”, conta, orgulhoso. 
Luiz Carlos Barreto hospedou Glauber pouco tempo depois, quando o baiano veio editar o filme no Rio com Nelson Pereira dos Santos. “Ele recebia o pessoal do Cinema Novo, um movimento que ainda estava começando e um dia me apresentou a Roberto farias, dizendo que eu tinha que escrever um roteiro para ele. Acabei escrevendo ‘O assalto ao trem pagador’ e me envolvi com a produção ao intermediar, através de Otto Lara Resende, a verba de 100 mil dólares, na época, com José Luiz de Magalhães Lins, do Banco Nacional de Minas Gerais,  que acabou financiando muitos títulos depois do sucesso do filme, funcionando como uma pré-Embrafilme”, compara. 
Lembra que essa foi uma retomada do prestígio do cinema brasileiro, que andava abalado pelo ciclo da chanchada. “Só que depois que fizeram uma retrospectiva com o tema em Toulose, a chanchada virou cult. No Brasil as coisas só são reconhecidas quando recebem o aval no estrangeiro. Foi assim com a Bossa Nova depois do Carneggie Hall e o Cinema Novo com a crítica europeia. É a nossa produção dependendo eternamente da aceitação lá de fora”, lamenta, citando a recente morte de Tom Wolfe, tratado como gênio pela mídia: “Ele era um escritor medíocre”, opina, confessando, porém, que chagou a se “aproveitar” desse espírito colonialista, exagerando quando negociava um  filme em um ou dois países: “Eu sempre falava nas entrevistas que ‘conquistamos o mercado externo’”. 
O produtor afirma que foi essa aceitação no exterior que os fez serem respeitados, pelo menos até certo ponto, pelo governo militar. “O que não acontece agora com essa ditadura policial-judiciária. Essa é perigosa, a militar tinha, ao menos, um senso de defesa nacional. Geisel, por exemplo, era extremamente nacionalista, por isso está sendo acusado agora. Ele pode até, sem saber, ter assinado algum documento, mas não acredito que tenha assassinado alguém. Como oficial e estrategista, sabia que estava na mira de um golpe que tinha por trás os Estados Unidos e Silvio Frota”, opina, lembrando que o ex-presidente demitiu dois generais na época, foi o primeiro a denunciar a tortura de Gregório Bezerra e ainda deu cobertura a João Goulart em Porto Alegre, quando ele voltou da China para assumir a Presidência. 
E cita duas situações que vivenciou para justificar a defesa: “Quando a ‘Folha de S. Paulo’ e a ‘Tribuna da Imprensa’ faziam campanha para fechar a Embrafilme, acusada de fazer pornochanchada, fui a Brasilia com Roberto Farias, Nelson Pereira, Beth Faria e Sônia Braga, onde Geisel nos disse que ficássemos tranquilos pois, no campo cultural, não faria concessões. Numa outra situação, testemunhei o filho do Médici, Roberto, dizendo: ‘Aquele filho da puta comunista vai pagar a traição que está fazendo com a revolução’”. Para os que se assustam com a sua posição, Barreto reforça que é um dos grandes combatentes da ditadura - “Mas Geisel não tinha relação com aquilo”, acredita.     
Barreto dá um salto no tempo, para comentar os últimos 16 anos, em que o país foi governado por Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva: “O Brasil virou uma nação. Tirando as contradições dos dois presidentes, o país avançou cem anos em 16. Lembro que, comparado ao Vale do Jequitinhonha, em Minas, onde filmamos ‘O padre e a moça’, em 1965,  o Nordeste era um luxo. Hoje, a região parece a Bélgica e também encontramos sinal de vida no Nordeste, quando, naquela época, o comum era ver caixões de crianças em frente às casas do interior”, compara, sem isentar, contudo, o PT de crítica: “O problema é que Dona Dilma, que tem o mérito de ser uma guerrilheira, tem o desmérito de ter se curvado às imposições do mercado no segundo mandato”. 
Ele, que assina a produção do filme “Lula, filho do Brasil” (2009) com a filha, Paula, afirma que Lula cometeu vários erros, “mas não da forma que estão pintando”: “Lula sempre foi anti-comunista! Substituiu a luta de classes pela inclusão social. Aliás, me sentirei culpado se ele e Zé Dirceu forem assassinados, porque publiquei, há pouco tempo, um artigo com o título ‘Por que no lo matan?’”, ironiza. E explica com mais uma de suas incríveis histórias: 
“Quando Fidel esteve aqui, logo depois da Revolução Cubana (1959), teve uma recepção nos salões da Maria do Carmo Nabuco, onde tudo se resolvia politicamente. Todos que chegavam nele reclamavam do Carlos Lacerda. Quando Roland Corbisier, filósofo fundador do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), chegou para reclamar também, Fidel já estava de saco cheio, pois queria prestar atenção na festa, era um mulherengo. E perguntou: ‘Él tiene dos brazos, dos piernas, ¿es un hombre como nosotros? ¿Por qué no lo matan?’”  
Barreto também sai em defesa de José Dirceu: “Dos 600 depoimentos de seu processo, o único que realmente o ataca é o do Roberto Jefferson. Mas Zé nunca irá contar que o Jefferson ia semanalmente ao Palácio do Planalto cobrar uma dívida de R$ 10 milhões de sobra de campanha e cargos na administração. Numa audiência, Zé Dirceu disse que aquilo era uma questão entre o PT e o PTB, não do governo federal. E provou que o partido já havia recebido os cargos devidos. Foi aí que o Jefferson procurou o Waldomiro Diniz e o Carlinhos Cachoeira, para montar todo aquele esquema. E foi pego para exemplo. Quando vi a notícia de que o Zé Dirceu seria preso novamente, se eu tivesse não 90, mas uns 60, iria embora daqui, viveria clandestino no Canadá. O que querem, liquidar tudo?”, conta, desolado.            
O produtor anda realmente desalentado com a situação política brasileira ou, como melhor definiu, está “obnubilado”. “Estou tão perturbado que minha mente está bloqueada. Estamos vendendo tudo o que foi construído pelo povo brasileiro! Essas reformas trabalhista e da previdência são apenas para criar um maior lucro para o capital financeiro internacional. É um governo que trata a população brasileira como laranjas: tem sobrando, pega uma, chupa, joga fora na estrada e pega outra”, diz o produtor. 
Barreto ainda chama a atenção para outra questão, a do Instituto Millenium: “Ninguém se dá conta da atuação desse Millenium, que é um tipo de Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), que financiava agitações na década de 1960, quando eu ouvia, por exemplo, o Aristóteles Drummond, de direita, falando que ia fazer umas pichações tipo ‘Abaixo a ditadura’”, revela, sem medo de citar nomes (“Aos 90 anos, não posso me esconder”). 
O pessimismo o abala tanto que ele tem dúvidas se até haverá eleição em outubro. “Se tiver, vai ser fraudada porque já tem candidato eleito. E tem a questão da biometria, que quase ninguém fez e muita gente não vai poder votar, além do sistema de apuração. Lula costumava dizer que a população está anestesiada, e parece isso mesmo. O noticiário parece o boletim do Judiciário, o Supremo virou uma delegacia”, reclama. 
A memória invejável e a lucidez de Luiz Carlos Barreto misturam-se à tranquilidade´ - e até o bom humor - quando comenta como é fazer 90 anos. “Sou uma das últimas testemunhas da história! Lembro do Brício de Abreu, jornalista, que a gente apresentava como ‘o que tinha entrevistado Pedro Álvares Cabral’. Agora, estou me sentindo assim, como aqueles grandes arquivos de metal. Outro dia me ligaram para dar um depoimento sobre a Copa de 1958 e acabaram falando que eu era o único que estava vivo...”, diverte-se. E aproveita para contar mais uma história, desta vez sobre Jorge Amado. “Eu sabia que era aniversário dele de 80 anos e fui visitá-lo. Ele me perguntou como eu havia descoberto, pois escondia a data, e eu respondi que o contrato de ‘Dona Flor’ tinha servido para algo... Ele dizia que, depois dos 80, a gente começa a contar retroativamente.”
Gilberto Chateaubriand, dono dos Diários Associados, com quem conviveu por tantos anos, é sujeito de várias histórias peculiares. Como quando ele foi enviado, em seu lugar, a um navio onde o trilionário Stavros Spyros Niarchos reunia as pessoas mais ricas do mundo. “Ele não queria ir e os amigos me diziam que ele tinha me enviado para tomar conta da Aimée de Heeren, mulher por quem era apaixonado e que disputou com Getúlio Vargas. Por outro lado, começaram a me dizer que eu estava flertando com a cantora Beth Douglas, que era amante do grego, que ficava em um iate que navegava ao lado do navio. Um dia, o armador me chamou para ir no iate e me disse que tinha muito orgulho de ter recebido uma Ordem ao Mérito do Brasil. Era a tal ‘Ordem dos jagunços’ que o Chateaubriand tinha inventado!”. 
Barreto lembra de Chateaubriand como um homem sem escrúpulos, que dizia que “o pudor e as virtudes são o câncer da alma, porque geram hipocrisia”: “Taxam ele de gângster, mas teve a visão de criar, por exemplo, clubes de aviação e fundar vários museus”, cita.  
Produtora ‘dinossaura’
A LC Barreto, produtora de Luiz Carlos tem ao lado da mulher, Lucy, está completando 55 anos. “Nós somos chamados de dinossauros. Não existe, no mundo inteiro, uma produtora de cinema em atividade há tanto tempo”, afirma Lucy, orgulhosa, avisando que haverá comemorações, como retrospectivas no MoMa e no Festival de San Sebastián.  Uma das produções da LC em finalização é um documentário sobre o trabalho escravo no Brasil. “Hoje é algo muito maior do que antes da abolição, pois está nas passarelas de moda, nos times de futebol, nas ruas enfim, infiltrado em todos os setores”, afirma ele. 
Lucy aproveita para citar outros trabalhos em andamento ou ainda em projeto, como “O negro no futebol brasileiro”, série de cinco capítulos que será exibida durante a Copa na HBO, e a ficção “Amor sem fronteiras”, uma coprodução com a Argentina. O seriado “Toda forma de amor”, assinado pelo filho Bruno; o longa “Ela disse, ele disse”, baseado no livro de Thalita Rebouças, que começa a ser filmado no final do ano, e documentários sobre os trabalhos de Educação, de Yvone Bezerra de Melo, e de Ciência, de Joana D´Arc, são alguns dos outros trabalhos da produtora do casal.  

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