Almanaqueiras: ou não queiras.

Almanaqueiras: ou não queiras.

quinta-feira, 24 de maio de 2018

aproveita que hoje é quinta, com cara de segunda.

Aproveita que hoje é segunda 


Ana Paula Lisboa

Quantos pretos trabalham com você? Eu não estou falando da tia do café, da faxineira, do segurança

Hoje é segunda, sim, hoje é segunda. Eu sei que você deve estar lendo esse texto na quarta, mas hoje é segunda. Eu escrevo às segundas, ou pelo menos deveria. Digo deveria porque desde que me tornei minha própria exploradora, há pouco mais de um ano, eu tenho tentado produzir um plano de trabalho que seja maior que meu vício em procrastinar. É que se a “classe operária tudo produz, a ela tudo pertence” e entendi que era preciso dominar os meios de produção. Ao menos os meios de produção da minha própria vida.

Eu sou tão procrastinadora, mas tão, que outro dia, ao invés de produzir meus cinco textos atrasados, eu cismei que precisava fazer uma busca do meu nome no Google. Apareço em coisas que parece que vivi em outra encarnação.

Achei, por exemplo, um vídeo de uma fala minha num evento, e odeio ver meus vídeos, acho sempre que pareço uma jovem boba. Havia também a foto da equipe que produziu todo o evento. O slogan da empresa, ao fundo da imagem, é algo que mistura produção e impacto positivo na sociedade. O evento foi mesmo lindo: palestras incríveis, comida vegana e café delicioso. Eu meço boa parte da qualidade de um evento pela qualidade do café servido, sim.

Mas olhando a imagem daquela equipe linda de trabalho, sorridente e feliz pela tarefa bem feita, mais uma vez me vi olhando para a tela do computador e me perguntando: “onde estão os pretos?”. Eu já disse aqui do meu vício em me perguntar onde eles estão, em todo e qualquer espaço. E lá, mais uma vez, eles eram um total de zero.

Aproveita que hoje é segunda, olha pro lado, quantos pretos trabalham com você? Eu não estou falando da tia do café, da faxineira, do segurança. Estou falando da mesa ao seu lado, da mesa à sua frente! Veja bem, eu nem estou falando do seu chefe, estou falando mesmo dos seus colegas, aqueles que vão para o bar depois, aqueles do amigo oculto no fim do ano.

Aliás, o fim do ano pra mim é sempre meio assustador, aquelas imagens das festas da firma, as pessoas sorridentes, felizes (e com toda razão) em ter conseguido terminar mais um ano. Que vergonha alheia eu sinto ao ver nas redes sociais as fotos dos escritórios formados por pessoas com o mesmo tom de pele, com o mesmo cabelo. Uma grande placa homogênea e sorridente do que é ser o trabalhador não braçal brasileiro.

Hoje é segunda, 21 de maio, e é também quando se celebra mundialmente o “Dia da diversidade cultural para o diálogo e o desenvolvimento”. Eu disse DI-Á-LO-GO e DE-SEN-VOL-VI-MEN-TO. Eu não estou falando de favor, cotas, inclusão, representatividade ou empoderamento, repito: DIÁLOGO e DESENVOLVIMENTO.

Eu não estou falando de afeto, eu não estou falando de amor, de amizade, casamento, eu estou falando de trabalho. Esse trabalho que a gente tem, que deixa a gente cansado no fim do dia, que às vezes a gente acha que deveria estar fazendo outra coisa, esse mesmo que o capitalismo inventou, de segunda a sexta, 8 horas por dia, esse que a gente se preparou anos pra ter, esse que a gente acha que merece, esse que a gente não larga por tantos e tantos motivos.

Eu tenho dois amigos queridos atores, homens negros. Paulo Rhasta está realizando pela cidade do Rio leituras dramatizadas da peça “Tuti”, escrita nos anos 80 por Ubirajara Fidalgo. Ele foi atrás do texto, da adaptação, das atrizes, da diretora, do espaço para realizar as leituras, da cadeira em que os espectadores sentam, e ainda atua.

Leandro Santana deu-se de presente de 20 anos de carreira o monólogo “Lima entre nós”, terminou a temporada de três semanas na Casa de Cultura Laura Alvim e está lutando para voltar com o espetáculo em cartaz. Imagina o Lima Barreto encenado no auditório da ABL, lugar em que nunca foi aceito.

Eu poderia citar tantos outros atores, mas cito os dois porque as conversas que tivemos me fizeram chorar em duas noites muito especiais da minha vida. Ouvir esses dois grandes e talentosos homens em suas falas de fragilidade, amor pela profissão mas, ao mesmo tempo, tanta frustração, me quebrou e me reconstruiu.

Por isso, a ausência de atores negros na novela “Segundo sol" soa tão surreal quanto a foto dos produtores do evento. E não é por que a novela se ambienta na Bahia, é porque ela se ambienta no Brasil. E não é que a novela não vá ser bem feita, assim como o evento foi bem produzido, mas a gente está falando sobre o papel da televisão na construção da identidade brasileira.

O que digo não se limita à diversidade em frente às câmeras, porque “se houver diversidade no time que vai conceber as paradas, é muito provável que vá ter diversidade em todo o resto, das mesas de debate às empresas fornecedoras do coffee break", como escreveu a Marina Motta.

Ou como escreveu a Irina Bokova, diretora-geral da Unesco: “Um local de trabalho culturalmente diverso é não apenas mais inovador, mas também mais produtivo e economicamente rentável.” Olá, capitalismo!

Mas falando em sol, aproveita que o Sol entrou em Gêmeos e que Gêmeos é signo da dúvida, da curiosidade sobre o outro e sobre si. Aproveita que hoje é segunda, dia das possibilidades e da construção do novo. Se não for, faz de conta que é. Aproveita!

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