Almanaqueiras: ou não queiras.

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sexta-feira, 2 de março de 2018

“príncipe dos poetas”

“Invenção de Orfeu”

Bráulio Tavares 


Ainda conservo um exemplar, muito manuseado e anotado, da edição de bolso de Invenção de Orfeu que Jakson Agra me presenteou por volta de 1975. Me fez companhia durante estes anos todos, e creio não estar cometendo nenhuma indiscrição se disser que muitas vezes me bastou abri-lo ao acaso, ler uma ou duas páginas, para ir direto para o caderno, com um poema prontinho na cabeça. 

Plágio? Não, coleguinhas. A grande poesia tem este efeito hipnótico de poder nos transportar para um estado mental onde nossos próprios poemas desabrocham maduros ao nosso toque, implorando para ser colhidos. Numa metáfora informática: para ler um poema assim, nosso cérebro tem que rodar o mesmo programa que é necessário para escrever algo parecido.

Coisa impressionante a poesia brasileira. Temos poemas-livro de riqueza inesgotável e novidade permanente. Qualquer um deles, isoladamente, justificaria a existência de um país e de uma cultura: Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles, Cobra Norato de Raul Bopp, Poema Sujo de Ferreira Gullar, Morte e Vida Severina de João Cabral, Galáxias de Haroldo de Campos... e tantos outros que imperdoavelmente desconheço.

Invenção de Orfeu de Jorge de Lima é um desses Louvres poéticos onde cada página é uma Mona Lisa, uma Vitória de Samotrácia. A Editora Record acaba de reeditá-lo, tornando novamente acessível o seu fascinante carrossel de imagens surrealistas, linguagem épica, erotismo místico, geografia mágica, mitologia cristã, métrica clássica, ousadias sintáticas e vocabulares.

“Aqui é o fim do mundo, aqui é o fim do mundo”: a voz tropicalista de Gilberto Gil entoava estes versos de Torquato Neto que citavam o Canto VI da Invenção de Orfeu. 

Jorge de Lima influenciou os tropicalistas, e deu o ponto de partida para O Grande Circo Místico de Chico Buarque e Edu Lobo, um dos melhores discos conceituais da MPB. 

Morto em 1953, continua sendo estudado e discutido pelos críticos, mas sua obra precisa de reedições que a deixem acessível a um público maior.

Numa época em que a poesia desliza preguiçosamente pelas águas mansas do verso sem métrica, do verso sem rima, do verso curtinho, do verso meramente esperto e galhofeiro, a poesia de Jorge de Lima pode ajudar todos nós a reativar funções verbais de maior complexidade e organização, e principalmente, de maior nível de exigência. 

Não é fácil escrever com o rigor técnico e a assustadora liberdade criativa de Jorge de Lima neste poema. Não direi que a gente precisa escrever parecido com ele; mas um poeta capaz de dominar uma linguagem no mesmo nível de complexidade verbal e imaginativa que a dele é um poeta capaz de escrever qualquer coisa. 

Aprender a ler é aprender a escrever. Ler Invenção de Orfeu do primeiro ao último Canto é um curso de Doutorado em personalização da dicção poética. Uma viagem ao Inconsciente individual, da qual emerge toda a História coletiva de uma nação. 

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