Almanaqueiras: ou não queiras.

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quinta-feira, 19 de outubro de 2017

faz mais de meio século que "poeta" está consagrado entre falantes cultos como substantivo de dois gêneros, tanto no Brasil quanto em Portugal.

Falíveis e pesadões, dicionários são muito úteis, mas a língua é maior 

Sergio Rodrigues 


SAO PAULO, SP, BRASIL, 25-09-2015: XXXXXXX. PRODUCAO DICIONARIO AURELIO (Foto: Fabio Braga/Folhapress, ILUSTRADA)***EXCLUSIVO***.

Gosto muito de dicionários e tenho uma prateleira cheia deles. Alguns são tão antigos que trazem palavras como "espheromachia" (definida como "jogo da bola") em páginas que se quebram entre os dedos como finíssimas pizzas brancas.

Talvez seja essa convivência com sua precariedade comovente, com o fato de serem os dicionários tão condenados à decrepitude e à morte quanto qualquer um de nós, que me leva a manter com eles uma relação que não dispensa, ao lado da admiração amorosa, o olhar crítico. Não é algo que combine com o senso comum.

Obras monumentais, os dicionários costumam inspirar um sentimento de reverência que frequentemente descamba para o fervor religioso. Muita gente supõe que todas as dúvidas sobre a língua possam ser esmagadas como moscas sob o peso de suas páginas.

Por trás disso está a crença de que, em vez de simplesmente registrar as palavras usadas na vida real, os dicionários são seus inventores. Quando lá não encontram algum vocábulo, dizem os fiéis da religião lexicográfica que ele "não existe" –mesmo que sua existência seja uma obviedade a lhes entrar por olhos e ouvidos todos os dias.

Mais realista é encarar o dicionário como uma espécie de cartório de registro civil em que as palavras ganham documentos. A falta de uma certidão de nascimento (para brasileiros) ou de um visto de residência (para estrangeiros) cria embaraços, mas não condena ninguém à "inexistência". O mesmo ocorre com as palavras.

Se a língua que usamos para dar conta do mundo é ágil, vertiginosa, dicionários são pesados e conservadores por definição. Isso é bom. Caso corressem para registrar todos os neologismos e gírias da moda, teriam que promover expurgos periódicos para se livrar de bobagens precocemente esquecidas.

No entanto, a lentidão muitas vezes faz deles árbitros falíveis diante de bolas divididas "no intenso agora", para citar o belo título do novo documentário de João Moreira Salles.

Longe de esmagar todas as moscas, é comum que os dicionários engulam várias delas. Um exemplo: faz mais de meio século que "poeta" está consagrado entre falantes cultos como substantivo de dois gêneros, tanto no Brasil quanto em Portugal. É difícil encontrar uma poeta digna desse nome que se identifique com o tradicional feminino "poetisa", hoje cheio de conotações beletristas e condescendentes.

Para a maioria dos lexicógrafos, ainda é cedo: "poeta" é vocábulo masculino e pronto. Até o "Houaiss", o melhor dicionário da língua portuguesa, nega-lhe o documento unissex que ele merece faz tempo. (Reconheça-se que, em sua edição mais recente, registra esse uso numa tímida notinha sob a rubrica "gramática", o que é alguma coisa, mas é pouco.)

Gostaria que esta coluna fosse lida como uma declaração de amor aos dicionários. Quando deixamos de vê-los como as Tábuas da Lei, fica bem mais fácil gostar deles.

O ex-procurador Marcelo Miller declarou à Polícia Federal que fez apenas reparos "linguísticos e gramaticais" a um esboço de delação da JBS. Achei frágil a defesa. A julgar pelo português de Joesley Batista, deve ter reescrito o documento inteiro.

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