Almanaqueiras: ou não queiras.

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sexta-feira, 28 de julho de 2017

Por que enfeitamos mãos, pescoços, pulsos, salas, conversas?

Recall químico

Tati Bernardi 




Anel foi o primeiro a perder o sentido. Pra que vou meter argolas nos dedos? Por que enfeitamos mãos, pescoços, pulsos, salas, conversas? Logo parei de cortar e pintar as unhas. Brotaram cabeças de peles afiadas nos cantos que serviam, entre outras dores, para distrair os dentes. Sapatos, quando representantes supremos do "para caminhar como uma fêmea", foram para o fundo do armário. Eu queria passar o resto da vida com essas botinas sujas e pesadas. Banho eu mantive por uma questão de respeito ao outro, mas que horinha macabra. Se os pensamentos não andam solares fora da água, dentro eles se tornam profundamente, "uterinamente", primitivamente sombrios. Aquilo que você não suporta a seco, encharcado tende a pesar infinitamente.
Pessoas que lhe indicam meditação, balinhas de plantas ou massagens sei lá das quantas, quando seu cérebro clama por um recall químico, são como fadinhas mal desenhadas por alguma criança pequena ainda conquistando o domínio motor.

Em algum momento, com alguma reserva que seu espírito guardou para se submeter a qualquer que seja a apreciação, você vai se maquiar. Doze camadas de bege saúde e o cinza da sua cara segue imperando. Cinco pinceladas de corretor milagroso de olheiras e o fundo do poço persiste longínquo abaixo dos olhos. Superfícies tentam, em vão, proteger uma centena de camadas que gritam: por favor não encoste em mim, pelo amor de Deus encoste em mim. E nas ruas todos caminham engordando, aguentando, esquentando, se contando, coloridos.

Meu amor, você está deprimida. Eu me dizia, bastante cínica mas também muito materna. E tudo bem. Você já fez a engraçada, a querida, a gatucha, a esforçadinha, a panicada, tudo bem descansar um pouco na tristeza. Vem. Deita aqui comigo no chão do banheiro. Dorme mais um pouco, ainda são só onze e meia da manhã. Vem ficar bem arrasadinha: olha que delícia. Eita que um mês de férias é pouco. Pare um ano. Ou mais. O celular descarregou: olha que maravilha. Ninguém. Apenas você emoldurada pelo sofá e a manta com cheiro de autodescaso. Apenas você e os fluidos de um azedo macambúzio, "eau" de enxofre borrifado pelas orelhas, os poros soltam a fumaça do inferno.

Ah, como são tristes as roupas penduradas, as plantas na varanda, o pacote de biscoitos pela metade fechado com uma presilha infantil. Como são infelizes os ácidos rejuvenescedores, o Instagram dos outros, as tão éticas discussões virtuais de pessoas cuja chatice deveria ser o pior de todos os crimes.

Com esforço, você bota a roupinha de existir mas a sua cabeça insiste. Perceba como seus amigos são falhos, frívolos e não gostam de você. Perceba como seu trabalhos darão errado. Você não queria escrever mais uma comédia idiota para ser detonada. Você não quer escrever uma "amargura-cabeça" sem dinheiro que ninguém vai assistir. E os pagamentos continuarão atrasados e os "criativos" declamarão livros técnicos e estudantes cheios de mesada e certezas dirão "perdi duas horas" e você perdeu dois anos. E essa coluna? Os mesmos solitários cuspindo misoginia e fracasso no espacinho que lhes cabe: a opinião do leitor. As mesmas malas doutoradas em pau-brasil com seus blogs e ódios sem público, disfarçando arrogância com desculpa ativista. Tudo, meu amor, é uma grande e imensa bosta. Vem, descansa na tristeza. Desiste bem gostoso. Olha que delícia.
Não.

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