Almanaqueiras: ou não queiras.

Almanaqueiras: ou não queiras.

domingo, 25 de junho de 2017

tudo o que o artista sente é processado e traduzido de alguma forma para as obras que cria. Sorte da plateia.

Vampirismo 

Martha Medeiros 




Não vivo isolada, minhas emoções são provocadas por gente com quem me relaciono e elas acabam incluídas no meu repertório criativo, mas...

Outro dia uma pessoa me perguntou: você vampiriza as pessoas que conhece para escrever seus textos?

Vampirizar é um verbo ao mesmo tempo charmoso, por invocar algo cinematográfico, e nefasto, pelo seu potencial de destruição. Não me soou bem, parecia que eu era personagem de um filme noir, uma maquiavélica toda vestida de preto, sedutora, disposta a arrancar o sangue dos meus interlocutores e devolvê-los à rua feito zumbis, ocos por dentro.

Disse a ela: tudo que escuto aqui ou ali pode me servir de inspiração, a vida é minha matéria-prima, e não vivo isolada, minhas emoções são provocadas por gente com quem me relaciono e elas acabam incluídas no meu repertório criativo, mas...

Ah, o mas. Mas não exponho ninguém de forma maldosa, narro as situações com acréscimos fictícios, não entrego nomes nem detalhes identificáveis — respeito a discrição alheia, e a minha, inclusive. A não ser que seja um elogio público, aí quem não gosta de ser citado? Lembro uma entrevista de uma importante compositora e cantora. O entrevistador perguntou se ela já havia transado com alguém só para extrair da transa uma música. Ela respondeu que não, mas que era inevitável que as coisas se misturassem, e contou que certa vez estava saindo com um cafajeste e ligou para uma amiga dizendo: “Ele foi embora! Ele me deixou!”. A amiga interrompeu e perguntou: “Quantas canções?” A cantora respondeu: “Não fale assim, ele me deixou, isso é horrível!” A amiga insistiu: “Quantas canções?” A cantora respondeu: “Três”. A amiga: “Ótimo, nós amamos esse cara”.
É isso. Para o bem e para o mal, tudo o que o artista sente é processado e traduzido de alguma forma para as obras que cria. Sorte da plateia.

Nós amamos todas as garotas que fizeram os Beatles comporem “I want to hold your hand”, “Oh, Darling”, “Sexy Sadie”. Todos os homens que piraram Tina Turner e Janis Joplin.

Todos os amigos que traíram Eric Clapton, todas as amantes de Mick Jagger, todos os sanguessugas com quem Billie Holiday e Amy Winehouse se meteram, todos os desalmados que fizeram Cazuza e Renato Russo atravessarem madrugadas curtindo uma fossa e rabiscando versos em guardanapos. Sem falar nos quadros, filmes e livros que nasceram de desavenças familiares, vinganças entre guetos, distúrbios emocionais inspirados por mães e pais indiferentes.

É recorrente questionar um escritor sobre o que há de biográfico e o que há de invenção naquilo que escreve. A resposta perfeita para a questão é: importa? (aliás, esta é uma cena do ótimo filme argentino Cidadão Ilustre, que também aborda o assunto). Dê uma olhada no sujeito blasé que aparece na foto das orelhas dos livros, geralmente com a clássica mão apoiando o rosto. Importa se a ruiva bipolar que aparece na página 78 foi uma amante que ele não tira da cabeça? Não há autor que não se abasteça da própria experiência e não exorcize sua dor através da sua arte. Se isso é vampirismo, só nos resta erguer um altar para quem entrou com o pescoço.

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