Almanaqueiras: ou não queiras.

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sexta-feira, 21 de abril de 2017

“A vida vivida é essa coisa esquecida entre um momento e um momento”.

Criar e repetir 

Zélia Duncan

Ensaios são mergulhos na criação e na repetição

Temos ensaiado muito. Não é metáfora, não, embora a frase caiba nestes momentos de farsa em que andamos tentando encarar e participar dos atos e fatos canastrões do Brasil. É literal. Estou num grupo que vai estrear um musical em maio, e os ensaios são intensos e diários, obviamente. É novo pra mim cantar num musical, embora conviver com um grupo, num ambiente teatral, recheado de música, não seja.

Adoro ver meus colegas trabalhando, e atores de musical precisam ser muito bons em, no mínimo, duas coisas; na terceira, precisam participar também, da maneira que puderem. São elas: cantar, dançar e atuar. Cantar é um pré-requisito neste caso. A não ser que você seja um Baryshnikov ou uma Fernanda Montenegro. A noção de canto é muito importante, porque, por mais que os solistas sejam fundamentais, o coro, a massa das vozes, é quem leva o barco até o seu destino. E eles abrem vozes, manuseiam o cenário, trocam de figurinos várias vezes. As adaptações não param, pois você começa sentada, aprendendo as músicas, os arranjos, as entradas. Então precisa inserir o canto na dança. Os que falam textos precisam decorar também suas falas. Então precisam adaptar o canto à dança e aos textos. Quando parece que está tudo chegando às mãos, começam a pipocar os figurinos. Estaca zero. Reaprende-se o que parecia estar aprendido, pois as roupas são muito diferentes daquelas dimensões que tinham as confortáveis roupinhas velhas de ensaio. Os espaços que criaram pra si naquele lugar que será o palco já não os acolhe como antes, é preciso redimensionar tudo.

Existe ainda o desafio de conquistar papéis. Nem sempre o diretor os conhece, atores de musical fazem audições sem parar e, na audição, pode ser que consigam mostrar o que estão mais habituados a fazer, mas tenham vontade de ampliar suas possibilidades, então isso gera uma ansiedade e uma competição interna naturais. Nosso musical não tem personagens fixos, mas os momentos precisam ser protagonizados, e os atores se revezam nessa função. Muitas vezes o protagonista é o coro, e vem uma força diferente, coletiva.

Ensaios são mergulhos na criação e na repetição. Criar e repetir. É uma imersão, antes de mais nada, no desconhecido. Cabe a nós o salto livre no escuro durante o processo, porque, por mais que o diretor, o coreógrafo, o figurinista, o diretor musical saibam a princípio o que querem, ninguém domina o resultado. E esse salto se repete na estreia, no dia seguinte, na primeira sessão de sábado e na segunda de domingo, pois nunca dominamos de forma absoluta o que fazemos. São as mesmas falas, os mesmos movimentos, as mesmas músicas, e o mistério permanece. As apresentações nunca serão iguais. A utilidade do que fazemos, do suor que derramamos aos litros, tudo é tão relativo no final das contas, e tudo é, ao mesmo tempo, tão necessário, quero crer. As pessoas podem viver sem esse espetáculo, sem qualquer espetáculo, e, nesse aspecto, são sempre inúteis. Mas eles podem também transformar a vida de alguém, no mínimo por uma hora e meia, como encarar os dias sem essa possibilidade? A vida é tão rápida e nunca para. “Mesmo quando o corpo pede um pouco mais de calma!”

Numa das conversas, depois de uma passada geral, um ator disse que tinha conseguido ver “como público” algumas coisas. Fiquei muito intrigada, pois uma vez no palco, tão implicada em atuar e participar da montagem toda, eu jamais, em tempo algum, conseguiria olhar pra nós ali, como se eu fosse o público. Não tenho essa isenção, são papéis muito distintos. Me faz lembrar de certas entrevistas, onde perguntam o que você acha do seu trabalho. Ora, esse não é o meu trabalho! Meu trabalho é a loucura de fazer, apesar de tantas coisas, apesar dos limites todos. Nos preparamos, na maioria das vezes, para estarmos prontos a não pensar, pois, como diz um poeta dos grandes, “viver é não pensar”. O diretor Moacyr Góes pontuou muito bem, “o jogador não pensa que vai fazer o gol na hora H. Ele faz!”. Pra isso treinou, afinal. Você sente que está ficando pronta quando para justamente de pensar, decorar, calcular. Quando está tudo absorvido, compreendido pelo seu corpo e sua emoção ali dentro. Mas não há garantias, só acaba quando termina, ou seja, a concentração precisa ser constante, pois uma coisa que você faz “com o pé nas costas” pode te dar uma rasteira, ainda que já tenha feito mil vezes.

Quando Roze já trabalhava lá em casa há um tempo, me vendo pra cima e pra baixo, cansada, doida, tendo que me maquiar na hora que devia me jogar na cama, disparou sua espontânea sabedoria: e o povo diz que vida de artista é que é fácil...

P.S.: “A vida vivida é essa coisa esquecida entre um momento e um momento”. (Pessoa)

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