Almanaqueiras: ou não queiras.

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domingo, 19 de março de 2017

A compreensão do mundo se reduziu a uma representação mais direta 

Bernardo Carvalho 





"A Regra do Jogo", de Jean Renoir, já era um filme deliberadamente anacrônico na estreia, em 1939, às vésperas da Segunda Guerra. "Uma maneira de interpretar o estado de espírito daquele momento era justamente não falar da situação e contar uma história leve. Inspirei-me em Beaumarchais e Marivaux, nos autores clássicos, na comédia", esclareceu o cineasta quando o filme foi redescoberto, depois da guerra. A declaração está no programa da adaptação teatral que a carioca Christiane Jatahy dirige para a Comédie Française, em cartaz em Paris.
Rejeitado na estreia (pelo visto, ninguém percebeu o que ele anunciava) e destruído nos bombardeios de 1942, o filme só passou a ser interpretado como prognóstico depois da guerra e graças a ela, retrospectivamente, quando foi reconstituído e ressurgiu em nova versão, consagrando-se como obra-prima no final dos anos 1950. Uma nota acrescentada aos créditos alerta, não sem alguma ironia, contra as associações fáceis: "Este divertimento, cuja ação se situa às vésperas da guerra de 1939, não tem a pretensão de ser um estudo de costumes. Seus personagens são puramente imaginários".
Se, mesmo depois da guerra, Renoir continuava resistindo à facilidade de fazer de seu filme, a posteriori, um arauto e uma parábola dos maus tempos, como ver uma adaptação teatral que aproveita a oportunidade dos tempos sombrios em curso para reencenar "A Regra do Jogo" com a mística do prognóstico? Seria interessante saber o que mudou entre o filme e sua adaptação teatral, senão no mundo, pelo menos na ideia de representação do mundo.

O filme de Renoir é atravessado por uma leveza ao mesmo tempo cômica, absurda e inconsequente, cujo travo vai sendo postergado até o final. São as maneiras de uma civilização e de um grau de liberdade que ali chegam ao paroxismo. Os personagens reunidos num castelo correm uns atrás dos outros, guiados pelo desejo nem sempre correspondido. O racismo não distingue classes. O antissemitismo se manifesta entre os empregados. A morte ronda, mas sua representação alusiva comporta uma graça comum aos desencontros amorosos: são esqueletos e fantasmas num teatrinho montado para a diversão dos convidados, sob os tiros das caçadas ao fundo.

Na peça, parte dessa ambiguidade submerge à maré sinistra do momento. A tensão está presente desde o início. Todos sabemos o que ali está sendo anunciado. A alegria é de fachada. O desejo é histeria e desespero. A diretora escolheu uma atriz de origem argelina para interpretar a anfitriã que no filme é vivida por uma austríaca. "Como a Christine de Renoir, a minha carrega a suspeita de uma suposta ameaça estrangeira contra a qual as pessoas acham que devem se armar, às vésperas de uma guerra iminente", diz Jatahy no programa da peça.
Além da representação do estrangeiro, com menção a imigrantes e refugiados, dois outros elementos são especialmente significativos nessa atualização teatral: os autômatos musicais que no filme eram o hobby do anfitrião foram substituídos por câmeras de vídeo (o anfitrião grava tudo e todos), e a caçada –agora, em vez de coelhos e faisões, as presas são mulheres vestidas de coelhinhas.
As coisas ficaram mais diretas, para dizer o mínimo. Em vez da alusão do som de tiros distantes, o terror é a própria expressão aterrorizada no rosto em close da mulher vestida de coelho, diante do caçador que também é a câmera. É um achado da adaptação, que diz mais sobre os novos tempos do que qualquer outra coisa.

A exposição direta e a visibilidade total não são capazes de nos fazer compreender melhor o que se passa a nossa volta. Ao contrário, elas nos hipnotizam e paralisam, como as coelhinhas encurraladas. É o que fica claro na fixação do anfitrião em registrar tudo com sua câmera de vídeo. A compreensão do mundo se reduziu em favor de uma representação mais direta, imediata, automática e não reflexiva, com toda a perversão que isso pode acarretar.

A peça me fez lembrar um caso recente. Ao contrário da má-fé conservadora que atribuiu o sucesso de "Moonlight" à representação politicamente correta de negros e gays (à visibilidade das minorias), acredito que a grandeza do filme esteja antes na sua maestria autoral, no que ele tem de criação e invenção. Mas quando o diretor de "Moonlight", investido de heroísmo, diz ao público, durante a entrega do Oscar, que não o abandonará, que não deixará de representá-lo; quando promete representar todos os que serão rejeitados por Trump, os que não terão direito de representação sob o governo Trump, ele põe a arte a serviço da lógica da democracia representativa.

É tanto mais normal que isso ocorra quanto mais frágil, vulnerável e falha parecer a democracia como sistema de representação social. Nessa hora, talvez seja difícil não reduzir a representação artística a um substituto, ao grau zero da invenção e da reflexão, por boas intenções ou simples oportunismo. Mas nunca é demais lembrar que
nenhum dos dois jamais serviu à boa arte.

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