Almanaqueiras: ou não queiras.

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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Essa autorreferencialidade...

Lugares do que não tem lugar 


Vladimir Safatle 





Um dos esquemas mais tradicionais de compreensão da arte parte do pressuposto de que o desenvolvimento formal de sua linguagem é expressão de uma forma de compensação social. Sem mais poder alimentar a ilusão de que seria o motor a impulsionar as transformações do mundo, a impulsionar as mudanças radicais em seus modos de apresentação, não teria restado à arte nada mais que duas saídas.

A primeira seria voltar-se a si mesma, tomar a si próprio como seu objeto, criando com isso uma dinâmica autorreferencial que apenas denunciaria sua impotência efetiva em ser uma prática social com capacidade de transformação de outras esferas sociais de valores.

Essa autorreferencialidade, ou seja, essa forma que a arte teria de, no fundo, falar de si mesma, de sua própria história, das questões internas à sua própria linguagem, seria para alguns um signo maior de sua perda de lugar.

Não podendo de fato transformar o mundo, não restaria à arte outra coisa do que falar de si mesma, deixando com isso de ter qualquer função social realmente relevante. A dificuldade e estranhamento de sua linguagem seria, para os que esposam tal leitura, apenas marcas de sua irrelevância.

A segunda saída consistiria em procurar desesperadamente uma função específica no interior do mundo social. O crítico de arte Pierre Restany afirmou décadas atrás que os artistas se transformariam em "engenheiros dos nossos lazeres".

Essa era sua maneira de dizer que a arte não seria mais o domínio dos objetos e processos que resistem à função. Ela paulatinamente assumiria a condição de uma engenharia de lazeres para turistas e pessoas à procura de alguma forma de sessão de beleza terapêutica capaz de nos retirar, por um momento, do universo cinza da vida ordinária e de seu tempo morto.

Assim, por exemplo, a partir principalmente dos anos 1970, os museus se transformaram em centros de entretenimento, onde contemplar uma obra de arte era uma atividade equivalente a ir ao restaurante, descobrir a mais nova sensação arquitetônica ou fazer compras em lojas que ofereciam design para classe média letrada. No fundo, os museus apareciam como os mais novos centros de lazer, impondo uma mutação na relação às obras de arte a partir da generalização da lógica desafetada do "acesso".

Isso quando não eram simplesmente uma peça fundamental de processos de financeirização e de rentabilização, tendo em vista os mais novos colecionadores potenciais.

Outra forma era tentar dar à arte alguma função explicita política fazendo dela o veículo de conteúdos de conscientização social ou de demandas de reconhecimento de grupos vulneráveis. Esta saída poderia parecer recuperar a esperança de uma arte que fosse enfim motor de transformação social.

No entanto, esta submissão da arte a uma lógica de propaganda apenas reiterava uma ideia fundamental que sustenta nosso mundo. Pois se trata de respeitar o veredito das sociedades capitalistas segundo o qual o que é desprovido de função não pode existir, o que não tem necessidade deve ser eliminado, o que é incompreensível deve ser visto como servindo apenas à perpetuação de formas de dominação. Ou seja, essa saída parecia engajada mas era muito mais conservadora do que gostaria de imaginar.

Nesse ponto, talvez seja útil lembrar que o destino da arte passa por nos mostrar como o que é desprovido de lugar, o que é desprovido de função pode expressar a insistência em um mundo outro, em uma forma outra de sensibilidade na qual a percepção das coisas não estará submetida à descrição unidimensional de sua função e lugar específicos.
Talvez isso explique um pouco porque toda sociedade autoritária despreza seus artistas. É interessante como elas sempre usam um termo recorrente para expressar tal desprezo, a saber, parasitas, desocupados. Um termo que voltou ultimamente a ser ouvido entre nós por nossos artistas. Pois há de fato uma dimensão de liberdade da arte em relação ao que se reduz à mera ocupação, ao mero preenchimento da reprodução de lugares já determinados que é insuportável a uma subjetividade embrutecida pela limitação do seu horizonte de experiência à perpetuação do presente.

Essa liberdade da arte sempre soou como uma afronta aos não querem outra coisa do que continuar a sustentar a reprodução de um mundo incapaz de produzir qualquer satisfação efetiva com sua existência.

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