Almanaqueiras: ou não queiras.

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sábado, 25 de fevereiro de 2017

A história, contada por Cardoso pelo ponto de vista de cinco personagens –a bisavó, os avós e o pai, além do bisavô–, mostra guardiões das utopias da cultura humanista que são confrontados pela brutalidade do nazismo.

Autor resgata história de familiares judeus que tinham identidade secreta

Mauricio Meireles



No princípio, havia um silêncio que durara muitas décadas. Na casa do escritor e historiador da arte Rafael Cardoso, o assunto ficara escondido sob uma mistura de culpa e vergonha.

Até o dia em que ele foi chamado pela mãe, que fez a revelação: os nomes dos bisavós e avós, bem como o de seu pai, não eram aqueles. A família tampouco era francesa, como o autor acreditava até aquele momento.

Judeu de origem alemã, o bisavô de Rafael era na verdade o banqueiro e renomado intelectual de esquerda Hugo Simon, que chegara a ser ministro das Finanças do Estado da Prússia em 1918.

Simon, que fora amigo de figuras de proa, como Albert Einstein e Thomas Mann, fugira dos nazistas com a família para o Brasil. Para isso, recorrera a identidades falsas.

Agora, Cardoso começa a preencher o silêncio da família. Depois de anos de pesquisa minuciosa em arquivos na Europa, ele reconstrói a história dela no romance "O Remanescente" –também num esforço de marcar o lugar do bisavô na história alemã.

O romance foi uma das 12 obras no programa Books at Berlinale deste ano, do Festival de Cinema de Berlim, que escolhe livros para apresentar a produtores de cinema.

"Até os 16 anos, acreditava que os nomes deles eram os nomes reais. Conversava em francês com meu pai. Era tudo uma grande encenação. Quando soube a verdade, minha mãe disse que eu não podia contar para ninguém. Guardei essa interdição até ter uns 30 anos", diz o autor, que também é sobrinho-neto do escritor Lúcio Cardoso.

Por que os inocentes ficam em silêncio sobre uma tragédia que se abateu contra eles? Cardoso tentou refletir sobre a questão. E acha que há nas vítimas uma vergonha de terem sido perseguidas. "É como se você fosse culpado do crime cometido contra você."

Hoje Cardoso vive na Alemanha, desenterrando a história da família. Nos últimos anos, também tem tentado descobrir o paradeiro da coleção de arte do bisavô.

Em 2012, ocupou o noticiário ao questionar o leilão de uma das quatro versões de "O Grito", do expressionista alemão Edvard Munch.

O quadro, vendido por um colecionador norueguês, havia pertencido a Simon, que, segundo Cardoso, fora obrigado a se desfazer dela durante a ascensão do nazismo.

Ele não teve sucesso, e a obra foi, à época, a mais cara já arrematada, por cerca de R$ 239 milhões. Até hoje, Cardoso conseguiu recuperar apenas cinco quadros da coleção de Hugo Simon, que tinha nomes como Oskar Kokoschka e George Grosz.

CORAGEM

Mesmo a conversa com a mãe não deu muitos detalhes ao escritor sobre a história familiar. Afinal, ela fora incumbida pelo pai de Cardoso a contá-la –porque ele, o neto de Hugo Simon, por algum motivo não sentia coragem.

O escritor só pôde saber mais detalhes aos 23 anos, quando desmontou a casa dos avós, que haviam morrido.

No mesmo armário em que ficavam os jogos de tabuleiro, achou em uma gaveta centenas de fotos e documentos. Entre eles, cartas de Thomas Mann e Albert Einstein reconhecendo a identidade de Hugo Simon (possivelmente porque ele ficara sem documentos na fuga).

A história, contada por Cardoso pelo ponto de vista de cinco personagens –a bisavó, os avós e o pai, além do bisavô–, mostra guardiões das utopias da cultura humanista que são confrontados pela brutalidade do nazismo.

Para o leitor que sabe o que houve na Europa dos anos 1930, soa irônico ver que Hugo Simon, no início da ascensão de Hitler, acreditava poder combatê-lo organizando um congresso de intelectuais e escrevendo na imprensa.

"Sou pessimista por um lado. As coisas não vão se repetir exatamente como nos anos 1930, mas tudo está degringolando de novo", diz ele, sobre a ascensão da extrema direita pelo mundo.

O autor vê isso como uma derrota da pena contra a espada? Não é por aí. O remanescente do livro não é nenhum dos seus familiares nem o próprio autor. O remanescente seria, diz, "aquilo que sobrevive depois que tudo se perdeu": no caso de seus familiares, a herança cultural e de pensamento.

"Mesmo que as coisas piorem muito, há valores que sobrevivem, coisas indestrutíveis. Esse é o papel da arte."
*
O REMANESCENTE
AUTOR Rafael Cardoso
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 59,90 (496 págs.)

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