Almanaqueiras: ou não queiras.

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terça-feira, 31 de janeiro de 2017

As fornidas latas de 1,5 quilo eventualmente vieram dar na praia. Foi, como se dizia na época, o maior barato. Um Brasil que mal saíra da ditadura careta saudou aquilo como uma dádiva da liberdade.

A maconha e a felicidade enlatada
Trinta anos atrás, latas e latas vieram dar nas nossas praias. Você abria e o gênio da cannabis aflorava, todo risonho.

por Nirlando Beirão

Maconha
Da lata sai o gênio da fumaça, que do mar, veio para a areia - A Lata, Chacal

Lendas, exageros, fanfarronice, imprecisões, maluquices esfumaçam – e esta a palavra correta – a história conhecida como “o verão da lata”. Três décadas atrás, o surreal aparecimento de latas e latas de maconha embaladas a vácuo ao longo do litoral do Sudeste brasileiro, flutuando na espuma das ondas como se fossem cardumes resplandecentes, abasteceu páginas e páginas de jornal, preciosos minutos de telejornal, cartuns deliciosos, músicas maliciosas e até camisetas evocativas.

As fornidas latas de 1,5 quilo eventualmente vieram dar na praia. Foi, como se dizia na época, o maior barato. Um Brasil que mal saíra da ditadura careta saudou aquilo como uma dádiva da liberdade.

Os cariocas é que fizeram do inesperado evento tema de uma nota só, naquelas primeiras semanas ensolaradas do calendário de 1988, ali não se falou em outra coisa, naquelas praias que ao crepúsculo aplaudiam o sol.

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O Solana Star fundeado no cais do Rio (Reprodução)

Mas na verdade “o verão da lata” começara no inverno anterior, o de 1987, e no litoral de São Paulo. Até hoje, 30 anos depois, o fascínio pelo surpreendente brinde do oceano reverbera em narrativas saudosas – e nem sempre coerentes.

Dois livros já se debruçaram sobre o tema, a versão ficcionada do psicanalista Oscar Cesarotto (O Verão da Lata, Ed. Iluminuras, 2005), e a do jornalista Wilson Aquino (Verão da Lata,  Editora Casa da Palavra, 2012). Na esteira inebriante do inesperado, um minucioso documentário (O Verão da Lata, de Tocha Alves e Haná Vaisman), reacendeu em 2014 a exultação quase mística do que parecia uma piada do destino.

Em meados de 1987, o País vivia a rebordosa do Plano Cruzado e assistia à desesperada tentativa de remendá-lo no que haveria de ser chamado de Plano Bresser – do novo ministro da Fazenda, Luiz Carlos Bresser-Pereira.

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As caricatas averiguações da polícia no Solana Star ( Lúcio Marreiro/ Ag. O Globo)

O governo Sarney, que também surgira como gambiarra política após a morte de Tancredo Neves, o presidente eleito que nunca tomou posse, envergava um jaquetão old style e oscilava entre um PMDB modernoso e as garras da mais atrasada oligarquia, o PFL.

O Brasil aturdido navegava a esmo na presunção da mesmice. A cannabis enlatada foi de consumo limitado, por mais que não tenha vivalma que não se vanglorie de tê-la experimentado. Teve, de todo modo, o condão de simbolizar uma felicidade possível.

O Solana Star era um cargueiro de bandeira panamenha, mas de procedência australiana. Antes de enveredar por águas do Atlântico Sul, passara por Cingapura e fizera uma escala na Tailândia – que, soube-se depois, foi de vital importância estratégica.

Impressionante que aquela carcaça meio enferrujada se aventurasse por águas tormentosas, porém, ela tinha uma audaciosa missão. Quem a explicitou com aquela clareza de alerta policial foi a DEA, a Drug Enforcement Administration, o órgão criado uma década antes, no governo Nixon, para reprimir a circulação de drogas onde quer que fosse, sem respeito algum pela soberania dos países.

A DEA extraíra, de um chefão do tráfico preso em Miami, a informação sobre o Solana Star. O destino seriam os Estados Unidos. O cargueiro ficaria em águas internacionais ao largo da Flórida e o carregamento seria transportado até o litoral em barcos menores. Já tinha dado certo uma vez, com a mesma tripulação. Desta vez, a droga poderia valer 100 milhões de dólares no mercado americano. Beneficiado pela delação premiada, esse chefão dedo-duro nunca foi identificado. Mas a dica era quente.


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A oferenda das marés aliviou a amargura causada pelo Plano Cruzado no Brasil ( Guilherme Pinto/ Agência O Globo)

Desconfiado de que o Brasil estaria na rota, a DEA despachou um agente para o Rio e ali ele convenceu as relutantes autoridades brasileiras a colaborar nas buscas em alto-mar. A Marinha disponibilizou a imponente fragata Independência.

A fragata não viu o Solana Star, mas certamente pelo Solana Star a nave de guerra, com seus convincentes canhões, foi vista – e assustou. A missão tinha de ser urgentemente abortada. No dia 19 de setembro, as inesperadas latas foram flagradas pela primeira vez nas praias de Astúrias e do Tombo, no Guarujá.

Pouco a pouco se percebeu que todo o litoral norte de São Paulo estava infestado, São Sebastião, Ubatuba, Ilhabela, Picinguaba, e que de Paraty para cima, também, de Angra, na restinga de Marambaia, em Guaratiba, na Barra da Tijuca, o presente enlatado, recolhido pelas ágeis redes dos pescadores, começou a fazer a alegria geral – e, para os caiçaras, uma súbita fonte de renda. Um belo dia, duas latas encalharam nas pedras do Arpoador. A maconha do Solana Star tinha sido, por virtude das marés, definitivamente democratizada.

O bagulho de DOC tailandês era tão demolidor que ganhou o apelido de “Mike Tyson” e a gíria “da lata”, incorporada ao dia a dia, passou a designar o que fosse excepcionalmente bom. O volume contido numa lata de quilo e meio era pródigo.

Tão logo se rompia o vácuo, o acepipe thai expandia-se numa espécie de montanha mágica, com centímetros de altura. Era coisa à beça. As latas continuaram pipocando na praia por meses a fio. Pela contabilidade da polícia, 11 mil latas nunca foram apreendidas. O Solana Star transportava, ao todo, 22 toneladas da mais refinada erva.

Para o barco e os tripulantes, o desfecho foi um anticlímax bem à brasileira. O procuradíssimo Solana Star ancorou, à luz do dia, no cais da Praça Mauá sem ser minimamente incomodado. Logo depois, seis dos sete marinheiros já estavam devidamente embarcados, em avião de carreira, com destino à América.

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As averiguações policiais resultaram na prisão do cozinheiro de bordo (Guilherme Pinto/ Ag. O Globo)

Apenas um deles, Stephen Skelton, cometeu a imprudência de ficar no cargueiro, enrabichado que estava – segundo conta a lenda – com uma sestrosa nativa de nome Gracinha. Quando a PF, enfim, deu conta da presença do Solana Star sob seu nariz, prendeu Stephen. Ele se apresentou como cozinheiro e alegou que não sabia de nada.

Como precisavam de uma fachada que acobertasse sua própria inoperância, as autoridades policiais e judiciais do Brasil trataram de condenar Shelton a 20 anos de prisão em regime fechado. Um ano depois, a DEA exigiu sua extradição para os EUA e assim se fez. Da Gracinha não se ouviu mais falar. Já o Solana Star foi a leilão e, arrematado por uma cooperativa de pescadores de atum, trocou o nome para Tunamar e acabou por naufragar, em 1994, diante de Cabo Frio. 

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