Almanaqueiras: ou não queiras.

Almanaqueiras: ou não queiras.

domingo, 30 de outubro de 2016

o problema de São Paulo é que você anda, anda, anda e nunca chega a alívio algum.

O paulistano não é de jogar a toalha, prefere estendê-la e se deitar em cima 

Antonio Prata 




O problema de São Paulo, dizia o Vinicius, "é que você anda, anda, anda e nunca chega a Ipanema". Se tomarmos "Ipanema" ao pé da letra a frase é absurda e cômica –segundo o Google Maps, caso eu saísse andando em direção ao Rio, levaria quatro dias e catorze horas para percorrer os 511 km que separam a minha poltrona verde das areias brancas do Posto 9. Tomando "Ipanema" como um símbolo, no entanto, como um exemplo de alívio, promessa de alegria em meio à vida dura da cidade, a frase passa a ser de um triste realismo: o problema de São Paulo é que você anda, anda, anda e nunca chega a alívio algum. O Ibirapuera, o parque do Estado, o Jardim da Luz são uns raros respiros perdidos entre o mar de asfalto, a floresta de lajes batidas e os Corcovados de concreto armado.

O paulistano, contudo, não é de jogar a toalha –prefere estendê-la e se deitar em cima, caso lhe concedam dois metros quadrados de chão. É o que vemos nas avenidas abertas aos pedestres, nos fins de semana: basta liberarem um pedacinho do cinza e surgem revoadas de patinadores, maracatus, big bands, corredores evangélicos, góticos satanistas, praticantes de ioga, dançarinos de tango, barraquinhas de yakissoba e barris de cerveja artesanal.

Tenho estado atento às agruras e oportunidades da cidade porque, depois de cinco anos vivendo na Granja Viana, vim morar em Higienópolis. Lá em Cotia, no fim da tarde, eu corria em volta de um lago, desviando de patos e assustando jacus. Agora, aos domingos, corro pela Paulista ou Minhocão e, durante a semana, venho testando diferentes percursos. Corri em volta do parque Buenos Aires e do cemitério da Consolação, ziguezagueei por Santa Cecília e pelas encostas do Sumaré, até que, na última terça, sem querer, descobri um insuspeito parque noturno com bastante gente, quase nenhum carro e propício a todo tipo de atividades: o estacionamento do estádio do Pacaembu.

Todo dia, quando o sol se põe, turmas se juntam nas calçadas para praticar crossfit. No meio do asfalto, uns nerds apostam corrida com carros de controle remoto, enquanto uns mais nerds ainda filmam tudo com drones. Sentados na mureta, casais se beijam, amigos jogam cartas, uns jovens fumam maconha e o mendigo deitado no barranco, contemplando o céu nublado, não incomoda nem é incomodado por ninguém.

Ontem, na entrada principal do estádio, um pai, um avô e duas crianças jogavam futebol, as enormes colunas fazendo as vezes de traves. Parei ali, fiquei vendo os dribles e ouvindo as risadas dos meninos até que, pouco a pouco, aqueles pilares gigantes, típicos dessa arquitetura fascista pensada para agigantar a pátria e humilhar o indivíduo, foram sendo trazidos –a contragosto, talvez– à escala humana. Lembrei do filme "Um Dia Muito Especial", do Ettore Scola. Numa tarde em que a cidade entra num frenesi pela presença do "Duce", Marcello Mastroianni e Sophia Loren se arriscam numa delicada história de amor. Como se o cineasta oferecesse, contra o massificante glutamato monossódico do totalitarismo, um ramo de alecrim.

"Gol do Vitor!", gritou o avô, "Gol do Vitor!", gritou o pai, então o Vitor saiu correndo, saltando e socando o ar feito um Carlos Alberto Torres em 70, nem aí por estar num estacionamento, cercado de concreto, asfalto e prédios por todos os lados, a quatro dias e catorze horas de caminhada das areias brancas do Posto 9.

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