O 'arquiamigo'
Arnaldo Bloch - O Globo

Ele é o pior dos amigos, e pode ser mais danoso que o arqui-inimigo
Pensei no conceito e veio a palavra: “arquiamigo”. Tive esperança de que a palavra não existisse. Oficialmente, não existia nem exitste, mesmo. Pelo Google encontrei uns links obscuros de Facebook e uma menção num endereço que sequer é um blog, o “novas palavras novas”.
Para o autor, que inventou a palavra antes de mim, “arquiamigo” é “o melhor e mais antigo dos amigos”. Fiquei feliz, pois o conceito que, em mim, gerou o vocábulo, é completamente diferente. Portanto, sendo uma palavra ainda não dicionarizada, sinto-me à vontade para dizer que discordo: o arquiamigo é, na verdade, o pior dos amigos. Mas não por ser “má influência” ou outros clichês. No caso, o mal está no mau uso do afeto.
Falamos do amigo que joga favores e companheirismo na cara do outro. Que cobra amizade segundo uma noção arbitrária do que é ser amigo. O arquiamigo deseja transformar o amigo numa cópia de si enquanto amigo, como se a amizade tivesse um formato, uma constituição jurídica, ou um caráter genético: se você pertence à espécie “amigo”, tem essas e aquelas características.
O arquiamigo é o amigo que cobra presença, cobra presente, cobra ausência. Incapaz de entender a singularidade do outro, ou enxergar que o outro tem uma vida e uma personalidade, o arquiamigo é um queixoso permanente: se o outro não atender às suas expectativas, ele reagirá com muxoxos, depois com indiretas magoadas por e-mail, num processo que pode resultar em dois desfechos: ou um sumiço total (durante o qual ele se queixará aos amigos do amigo) ou um desabafo desmedido, com acusações que, em outra época, levariam o réu à forca.
Se o amigo do arquiamigo der trela, justificar-se ou desculpar-se, correrá o risco de se tornar um refém submisso, de ter sua autonomia, sua rotina e sua consciência sequestradas, assumindo para si os males do outro e questionando-se como ser humano até ao desespero.
Ele será perdoado, mas atenção: esta é uma promoção por tempo limitado. Se não redobrar esforços em atender à agenda do arquiamigo, cairá novamente na rede das mágoas e, então, a punição será terrível. Se, por outro lado, a vítima do arquiamigo ignorar os apelos como quem finge não ver um fantasma (ao contrário dos fantasmas, o arquiamigo existe!), então o agressor irá arder, como aqueles monstros nos finais de filmes, sem maiores danos, e dane-se.
Na segunda acepção, o arquiamigo é mais sutil. Apesar de ser um poço infinito de amor, é tomado por surtos de inveja ou desejos difusos de usurpar a estabilidade do objeto do afeto. Mais discreto, este consegue conter a fúria e, em vez da cobrança afetiva, usa de um tipo de gentileza opressiva que esconde, no âmago, uma decidida, constante e progressiva desaprovação.
Em geral este tipo de arquiamigo é reconhecido por um certo gestual que consiste em menear a cabeça afirmativamente com um sorriso entre o compungido e o sarcástico, como se fosse algum tipo de beato assassino, ou advogado mal-intencionado, ou aristocrata falido em vias de destruir o sistema por dentro.
O amigo sentir-se-á altamente incomodado com estes e outros sinais, mas não saberá ao certo onde está o problema. Pelas costas, este arquiamigo mais sofisticado falará do amigo a Deus e ao mundo usando um grande repertório de elogios talhados por críticas aparentemente bem-intencionadas, mas que, no final da história, resumem-se a um discurso mais ou menos assim: “Eu adoro a fulana, é a pessoa mais incrível do mundo, uma alta inteligência, mas não adianta, sempre entrando em fria, sempre dando topada, escolhendo cara que é problema, dando pé em cara legal, depois fica deprimida, fuma que nem uma camela, fico passada, mas não tem jeito, não tenho paciência, ninguém merece, no fundo é uma otária, minha melhor amiga, sabe?”.
É claro que, para o amigo (no caso, a amiga), o arquiamigo(a) nunca dirá nada: tudo que o outro receberá será uma concordância protocolar e um sorriso imbecil.
Há outros gêneros de arquiamigos.
Aqueles que escondem até quase o túmulo um grande plano de vingança e o realizam no leito de morte do futuro ex-amigo.
Os que fazem fofocas para “o bem do outro” e acabam de vez com a vida do infeliz.
Há os que calam por cautela, para respeitar e, pasmos, assistem ao amigo seguir, cego, rumo ao parachoque do ônibus.
Há também os arquiamigos involuntários, que o são sem saber, e, por melhores que sejam, tornam-se altamente corrosivos: são os “amigos chatos”. Esses, talvez, os piores.
Seja como for, o arquiamigo pode ser, e muitas vezes é, mais danoso que o arqui-inimigo, que ocupa já uma posição clara e honesta de antagonismo clássico. Assim, num estranho efeito de looping, o arquiamigo se converte no verdadeiro arqui-inimigo, mais arqui-inimigo do que o arqui-inimigo (ou do que a própria arqui-inimizade). Ao passo que num arqui-inimigo regulamentar é possível enxergar o real amigo, que diz as verdades úteis, apara as arestas, mostra o fungo ruim, alerta para a morte da alma.
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