Explodimos porque somos atraídos pelo que coloca nosso sistema em risco
Em agosto deste ano, a morte de Theodor Adorno fará 50 anos. A efeméride da morte de um dos mais destacados filósofos do século 20 não poderia ser mais irônica, ao menos no Brasil. As reflexões de Adorno, representante maior da chamada Escola de Frankfurt, ou seja, dessa mesma escola associada ao que alguns nomeiam por estas bandas de "marxismo cultural", ganharam uma atualidade inaudita. .
Poderíamos nos perguntar o que faz de sua experiência filosófica algo tão desestabilizador para alguns. O que, para além das reduções de leitura que parecem vir de todos os lados, parece até agora inassimilável em sua filosofia?
É fato que a dispersão soberana de seus interesses pode dificultar a identificação de seus eixos centrais. Adorno compreendia a reflexão filosófica não como uma elaboração imanente ao conjunto de textos que compõe sua própria tradição, mas como uma confrontação constante com os múltiplos campos de produção da empiria.
Isso fazia com que ele se dedicasse, da mesma forma como elaborava momentos maiores da história da filosofia, à crítica musical, à crítica literária, mas também à sociologia, à psicanálise, à educação, entre outros. Muitos de seus conceitos maiores no campo filosófico aparecem inicialmente mobilizados para dar conta do estado da produção artística de sua época.
Essa atenção ao mundo e à sua produtividade tinha dois eixos fundamentais. Primeiro, tratava-se de mostrar como "os sonhos da razão produzem monstros". Ou seja, longe de assumir a crença cega no potencial racional das estruturas normativas de nossas formas hegemônicas de vida, Adorno via como sua tarefa maior mostrar como os sonhos de progresso, de racionalização social, de autonomia individual e de liberdade se transformaram no seu inverso, a saber, em dominação, dependência, servidão e regressão social.
Nesse sentido, não se tratava de avaliar a vida social a partir de padrões de racionalidade idealizados e pretensamente ainda não realizados. Tratava-se de mostrar como a própria razão ocidental produz suas regressões, como nossas formas de vida pretensamente emancipatórias são fundadas em verdadeiras patologias sociais que produzem e geram experiências de sofrimento e alienação.
Por isso, Adorno fornecerá uma das mais consistentes experiências de articulação entre crítica da razão e crítica social que o século 20 conhecerá.
Mas sempre se pode perguntar sobre o lugar ocupado por aquele que faz uma crítica tão extensiva da razão ocidental e seus horizontes normativos. De onde fala aquele que parece querer colocar abaixo os fundamentos mesmos de nossas formas hegemônicas de vida? Em algum desejo de retorno a alguma origem perdida? Em uma aporia niilista?
Há uma bela passagem na "Dialética do Esclarecimento" que pode nos dar uma indicação. Ei-la: "A natureza que não se purificou nos canais da ordem conceitual para se tornar algo dotado de finalidade; o som estridente do lápis riscando a lousa e penetrando até a medula dos ossos, o haut goût que lembra a sujeira e a putrefação; o suor que poreja a testa da pessoa atarefada; tudo o que não se ajustou inteiramente ou que fira os interditos em que se sedimentou o progresso secular tem um efeito irritante e provoca uma repugnância compulsiva".
Essa é uma passagem na qual Adorno e Horkheimer tentam descrever os processos psicológicos imanentes à segregação social. Tudo se passa como se fôssemos produzidos de forma tal a explodir diante da dificuldade em se relacionar com sons que penetram a medula dos ossos, com o que embaralha a distinção entre alimentação e putrefação, com tudo o que não se ajusta a imagens ideais e claramente determinadas, com tudo o que quebra os limites de nossas identidades. Explodimos porque somos atraídos pelo que coloca em risco nosso sistema de formas, nos identificamos com o que não porta nossa imagem e semelhança.
Essa era a maneira dele de dizer que a razão nos fez desaprender como nos relacionarmos à diferença, ao que não é idêntico. E este sempre será o eixo da crítica que move sujeitos a compreenderem que sofrem por não saber mais como lidar com o que não tem a figura do que se purifica nos canais da ordem.
Por isso, a filosofia de Adorno sempre será uma forma de lembrar que "aquilo que poderia ser diferente ainda não começou". E isso talvez seja o que mais incomoda.
Vladimir Safatle
Professor de filosofia da USP, autor de “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário